Ossada de 200 anos evidencia passado escravagista do Uruguai – 18/04/2025 – Denise Mota

Os arqueólogos Camilo Collazo Maceira (dir.) e José López Mazz trabalham no local da descoberta

Após mais de uma década de escavações no bairro montevideano de Capurro, uma zona historicamente conhecida pelo desembarque de populações africanas durante a época colonial, o Uruguai descobre os primeiros restos mortais de uma pessoa escravizada em cativeiro.

Iniciado em 2008, o projeto de investigação arqueológica tinha por objetivo central recuperar os limites físicos do “Casario dos Negros“, oficialmente chamado Casario da Real Companhia de Filipinas.

Foi o principal estabelecimento escravista da Montevidéu colonial, que tinha como financiadora central a Coroa espanhola e funcionou entre 1788 e 1812. Naquele período, a capital uruguaia se transformou no porto único para entrada de pessoas escravizadas com destino à América espanhola meridional. Ou seja, triangulava o comércio escravista entre África, Brasil e cidades do Vice-Reinado do Rio da Prata e do Peru, como Buenos Aires, Santiago ou Lima.

Para além da identificação das estruturas originais dessa construção, a equipe de antropólogos encontrou restos mortais do que se revelaria ser um adolescente africano enterrado em uma fossa de pequenas dimensões.

O esqueleto foi descoberto a pouco mais de um metro de profundidade, sob o piso de uma residência particular de uma moradora que aceitou colaborar com os pesquisadores.

Alterações dentárias características de rituais em algumas regiões africanas e análises biológicas, finalizadas em março, permitiram a identificação dos restos mortais encontrados: um homem “entre 16 e 18 anos”, oriundo da região onde hoje se encontram “Angola, Namíbia e Zâmbia”, e que “padecia de tuberculose” no momento de sua morte.

‘Sair da fantasia’

Enterrado há mais de dois séculos, esse esqueleto também descortina agora, a partir da sua materialidade, um aspecto ainda opacado na sociedade uruguaia: sua raiz escravista.

“Para a comunidade afro-uruguaia, isso significa a oportunidade de dar um pontapé inicial para que muita história seja desenterrada, e não só fisicamente. Saber de onde vinham essas pessoas, quais eram seus costumes e rituais nos locais de nascimento, para assim poder contar nossas próprias histórias”, afirma à Folha Mónica dos Santos, integrante da Comissão de Lugar de Memória Casario dos Negros e que atua no bairro Capurro em atividades culturais e sociais há mais de uma década com o coletivo Nzinga.

“Para a sociedade uruguaia em geral, é uma forma de sair dessa fantasia, dessa invisibilização de dizer que no Uruguai não há racismo e não houve escravidão. É a prova de que essas foram práticas que existiram. Se houve escravização, houve escravistas”, observa.

O encontro com um passado negligenciado também é uma oportunidade de ampliar horizontes na academia, pontua o antropólogo Camilo Collazo, coordenador da investigação.

“Esses restos permitem conhecer vida e morte da pessoa encontrada, além de emitir generalizações sobre a vida dos escravizados no contexto do Casario a partir da perspectiva dos escravizados”, afirma. “Pode ser um incentivo para a investigação do regime escravista a partir da perspectiva da arqueologia da escravidão, um enfoque teórico-metodológico incipiente no Uruguai”, assinala Collazo, que classifica a descoberta como “a mais importante” em seus dez anos de carreira.

Estimativas históricas sinalizam que entre 1777 e 1812, período que inclui o funcionamento do Casario, cerca de 70 mil pessoas escravizadas chegaram aos portos do rio da Prata, em 550 navios. A realidade dessa população, no entanto, é um ponto cego no imaginário dos rio-platenses.

“Essa descoberta é um antes e um depois, inclusive nas nossas vidas pessoais. Espero que isso traga mudanças sobre como contamos a história”, diz Mónica dos Santos.

Memorial

Atualmente, a Prefeitura de Montevidéu conversa com organizações sociais envolvidas em movimentos afro sobre a construção de um “memorial de grande envergadura” no local onde foram encontrados os restos mortais, conta Leticia Rodríguez, diretora municipal da Secretaria de Equidade Étnico-Racial e Populações Migrantes. “Com essa história única, configuramos também as circunstâncias que envolveram o tráfico de 70 mil pessoas e que formam parte do nascimento do Uruguai”, pondera.

Mulheres afro, como Rodríguez e Santos, afirmam desejar que essa instância amplie a discussão e gere novos interesses e iniciativas concretas. “Esse é um marco para a memória coletiva e para a construção do relato e de justiça social”, analisa Rodríguez. “Apesar de o Uruguai vir trabalhando nesse sentido, ainda não conhece e não quer conhecer —porque assim mostram os modelos educativos— a história das pessoas afro, escravizadas e libertas”, diz. “Por exemplo, dos soldados, construtores de ruas, dos trabalhadores de charquearias, saneamento, cemitérios, das lavadeiras, tarefas que sempre foram feitas pela população afro em grande medida.”

A comunidade afro-uruguaia também discute opções cerimoniais vinculadas à religiosidade africana para devolver esse ancestral ao lugar em que foi encontrado. “Que o Parque Capurro se converta em nosso lugar de memória. Podemos dizer que nesse lugar certamente começou nossa forma de ver a história neste continente. Que passe a ser simbolicamente nossa referência”, comenta Santos.

“Deve-se acompanhar sempre em diálogo a construção comunitária de um plano para essa região. A Instituição Nacional de Direitos Humanos foi fundamental para que houvesse parte dessas escavações, e sem um movimento social ativo isso não teria acontecido”, afirma Rodríguez.

Trabalhos paralisados

Os trabalhos de investigação em Capurro agora estão paralisados, sem perspectiva de continuidade e à espera de novas linhas de ação que possibilitem ser retomados sem depender exclusivamente de esforços da sociedade civil e dos pesquisadores, assinala Collazo.

“Faltaria conhecer a existência ou não de uma área de enterramento para os escravizados mortos, ou se houve enterros isolados, como o encontrado. Também devem ser localizados vestígios de edificações historicamente descritas – em 2024 pudemos encontrar um piso de tijolos que poderia corresponder a um dos barracões onde as pessoas escravizadas ficavam trancadas”, exemplifica.

Em seu relatório final, os pesquisadores escrevem que “a magnitude da descoberta, assim como seu significado, faz com que seja conveniente dar continuidade aos trabalhos, porque a zona de interesse supera a área explorada pelas investigações”.



Fonte ==> Folha SP

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