Passaporte, por favor, e um lenço para as crianças – 01/06/2025 – O fio de Ariadne

A imagem mostra a vista de um terminal de aeroporto através de um buraco circular. No interior, há escadas rolantes e várias pessoas se movendo pelo espaço. O piso é de ladrilhos em padrão quadriculado, e há sinalizações visíveis, incluindo anúncios. O ambiente parece bem iluminado e moderno.

Não eram nem seis da manhã e pedi uma cerveja, alheia a olhares de censura. Ao meu lado, uma família terminava o café da manhã. Os pais esmagavam os guardanapos discretamente sob a mesa, vestidos iguais, com um suéter e calça jeans, em uma extensão austera do seu silêncio. Talvez fosse cedo demais, esperando o voo.

Diante deles, na mesma mesa, dois irmãozinhos se encaravam, em uma brincadeira tortuosa de quem se move primeiro, perde. Digamos que uma das virtudes do aeroporto é estar em um espaço moderno, atemporal e anônimo, em uma enorme zona franca moral, livre de julgamentos. “Saúde”, pensei comigo mesma, e tentei me animar com a minha cerveja, a pequena recompensa por viajar de madrugada.

Os segundos cresciam nos olhos dos irmãos, e pai e mãe observavam o sedimento nas xícaras vazias, à espera do garçom. O caçula era o quieto, um garotinho sábio e sensível, capaz de driblar a loucura ao seu redor. O mais velho já nascera implacável, dava para ver na cara invocada de sobrancelhas franzidas e nos ombros tensos que o menino vivia de apostas arriscadas em nome da sobrevivência.

Eu observava as pessoas em trânsito, absortas em geografias a serem percorridas, mas congeladas no tempo. O passaporte em mãos, as perguntas de segurança, a atenção ao número do portão do embarque, pensando no que ficou para trás ou simplesmente na paranoia de pisar no cadarço desamarrado.

A busca de intimidade dos meninos no olhar mudo evidenciava o cansaço da vida distanciada entre os adultos. Era um daqueles casais meio chatos que sempre me intrigaram, jovens ou maduros que permanecem em silêncio, em um estado de amnésia universal, sem passado nem presente. Fantasiavam em seus devaneios. Bem que gostaria de acreditar que entre eles havia uma troca telepática elevada onde palavras já não eram necessárias.

Cresci em uma casa onde a educação, as opiniões, as discussões acaloradas sobre qualquer assunto aconteciam durante as refeições, mas o que eu sabia sobre esta família ao meu lado? Nada. Decidi ficar com meu copo, sob um lustre ultramoderno pendente de um teto alto. Não havia mais nada a fazer senão ouvir o chamado para embarcar, mas voltei a espiar a mesa. Eu me tornara o árbitro invisível.

Quis fazer uma graça ou deixar algo cair para romper a concentração dolorosa das crianças. O mais velho se esforçava em ser uma estátua insuperável. O menor era dócil em sua resiliência, mas dava sinais de que perderia para o irmão. Para garantir a imobilidade, mantinha as mãos presas entre o traseiro e a cadeira. Era uma pequena roca, um animismo exemplar da natureza.

Lembrei de um verso de Fernando Pessoa e procurei no celular. Sim, aquela família pertencia à sua “Autopsicografia”: “Nas calhas de roda, gira, a entreter a razão, esse comboio de corda, que se chama coração”. Esse era o jogo, distrair a razão. As crianças existiam pelo suspense e os adultos pela fuga deles mesmos.

É impossível definir a brincadeira sem entrar em paradoxos. Na recreação, os meninos estavam entre a liberdade e regras rígidas, o que me parecia uma definição livre do que o aeroporto representa. E os pais jogavam um jogo semelhante, mas marcado por um princípio oposto: evitar o contato visual, minimizar qualquer interação, o que me parecia pura agressão passiva, e não deixava de ser uma forma de manipulação, criando uma dinâmica de poder daqueles que não precisam reconhecer os outros.

Uma lágrima começou a brotar no mais novo, o que me deixou com pena. Não, ele não pode perder! Assim que a lágrima caiu, o mais velho maior gritou: “Você se mexeu!!!”. E o caçula, ainda com as mãos metidas atrás da cadeira, permaneceu imóvel, e eu estava prestes a intervir, mas de repente o pequeno revelou, em um tom quase distraído, sua interpretação brilhante.

“Você mexeu a boca. Porque você falou.” E o mais velho argumentou que estava apenas notando a lágrima, o que quebrava a regra. A mãe encarou os dois, em uma defesa distraída do caçula, dizendo que uma lágrima não significava nada em uma vida de silêncios. Mandava para o marido o recado por meio do filho, uma tática fraca do seu manual de incomunicação.

Foi então que o pai reagiu, olhando para a companheira pela primeira vez. “Pelo menos eles estão dialogando”, disse. “E digo a vocês dois, agora mesmo, que ninguém ganhou”, continuou com um leve sorriso perverso.

O homem era do tipo que fecharia o tabuleiro ao notar que estava perdendo. E a mulher, pensei, enquanto eu considerava pedir outra cerveja, estava convencida de que seria a grande vencedora imperturbável, esperando o oponente perder a cabeça.

Chamamos o atendente ao mesmo tempo e foi quando nós nos descobrimos. A mulher, visivelmente irritada, pediu a conta para o garçom antes que eu pudesse reagir. De repente, implorou com o olhar pelo meu bom senso.

O caçula empurrou o irmão da cadeira e recebeu em troco uma cuspida na testa. E um soco. A mãe desculpou-se pelos filhos, estavam a ponto de se matar, e mandou outro recado para o homem ao seu lado, mas com os olhos fixos em mim: “É o que ocorre quando se esquece os tablets das crianças“.



Fonte ==> Folha SP

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