Em cartaz no Sesc Pompeia, “Vermes Radiantes”, espetáculo dirigido por Alexandre Dal Farra, é uma peça que mistura humor cáustico, crítica social e um convite incômodo: “E você, faria diferente?”. A história do casal Jill (Maria Eduarda de Carvalho) e Ollie (Rui Ricardo Diaz), que comete crimes para garantir a casa dos sonhos, já seria perturbadora por si só. Mas a chegada da Srta. Dee – interpretada por Marco França –, uma figura tão envolvente quanto sinistra, coloca fogo na narrativa. Ela é o catalisador da trama, personificando a lógica cruel do sistema com um sorriso nos lábios e uma calculadora no lugar do coração.
A montagem, escrita por Philip Ridley e traduzida por Diego Teza, equilibra-se entre o confessional e o grotesco em um reality show sobre gentrificação. Maria Eduarda e Rui conduzem a peça com uma química que vai do amor ao crime em segundos. A dupla percorre as cenas com um ritmo preciso, mantendo a fluidez narrativa sem jamais perder a complexidade dos personagens, enquanto França rouba cenas como a Srta. Dee, uma espécie de fada madrinha do capitalismo selvagem, que sussurra: “Se não for você, será outro… por que não você?”.
A direção de Dal Farra é ágil e visualmente inventiva. O cenário, feito de painéis móveis e objetos escondidos sob uma lona, vai se transformando junto com a moral dos personagens. As luzes pulsantes quase cegam a plateia — um truque “sujo” para nos lembrar que, sim, estamos todos envolvidos nessa história. A trilha sonora, também assinada por França, é um personagem à parte, criando uma atmosfera entre o festivo e o funesto.
O texto de Ridley ganha camadas extras no Brasil, onde a desigualdade e a especulação imobiliária são feridas abertas. Mas “Vermes Radiantes” não dá sermão: cutuca, provoca e deixa a pergunta no ar. O título não é por acaso — afinal, quem são os vermes dessa história? Os que lutam por um lugar ao sol ou os que lucram com a podridão alheia?
Se você gosta de teatro que mexe com seus princípios e ainda te faz rir de nervoso, essa é a peça. Só não espere sair ileso.
Três perguntas para…
… Maria Eduarda de Carvalho
“Vermes Radiantes” aborda a gentrificação como um processo violento. Como atriz, de que forma você se conecta com essa crítica social e como ela ressoa em você, pessoalmente?
Meu primeiro contato com este texto foi em 2021. Rui me escreveu dizendo que Kiko Mascarenhas, nosso parceiro de trabalho em: “O Tempo Não Para” (novela onde nos conhecemos) havia lhe mostrado um texto sensacional, que ele acreditava que poderíamos fazer juntos. Me lembro que a primeira coisa que falei depois de ter lido a peça foi: “Vamos montar amanhã?!!” Naquele momento enfrentávamos a pandemia de Covid 19 no Brasil e, para mim, o texto conversou diretamente com tudo o que vivíamos. Para além da gentrificação, acho que “Vermes Radiantes” fala sobre este processo de desumanização que a gente vem experimentando. A partir de uma lógica pessoal, legitimada por um sistema econômico, suprimimos o outro em detrimento dos nossos desejos. O inusitado foi constatar, ao longo do processo de ensaios, a parte que nos cabe neste circo de horrores. Onde nós, “artistas sensíveis”, também somos cúmplices nesse processo de supressão do outro.
A montagem parece ter um forte processo colaborativo, especialmente com Alexandre Dal Farra na direção e a contribuição de Marco França na criação. Como você se encaixa e contribui nesse tipo de ambiente criativo?
Sim, foi um processo amplamente colaborativo. Alexandre é um diretor superiormente generoso e muito talentoso. Ele nos trouxe uma ideia de concepção cênica bem interessante e, a partir dela, eu e Rui tivemos total liberdade de propor caminhos para nossos personagens. Rui é um ator sensacional, que admiro profundamente. É um prazer imenso “jogar” com ele. Foi muito bacana acompanhar seu processo criativo e descobrir como nossas construções são complementares. Marco, que, além de ator, é um multi-instrumentista e assina a direção musical do espetáculo, também teve todo espaço para criar as instigantes intervenções sonoras que atravessam o espetáculo, além de brilhar em suas aparições, como Srta. Dee.
Como você enxerga o papel do teatro, e do artista em geral, na discussão de temas sociais urgentes como os abordados em “Vermes Radiantes”? Você sente que é uma responsabilidade do artista provocar essa reflexão?
Bom, eu fui uma criança profundamente angustiada e muito medrosa. Morria de medo do escuro, mas – para a minha própria surpresa – do escuro do teatro nunca senti medo. Ao contrário, percebi rapidamente que aquele escuro me acolhia, me amparava, acendia a luz da minha imaginação e ressignificava minhas angústias. Minha relação com a arte sempre esteve atrelada à essa possibilidade de transformação.
Me tornei artista porque entendi muito cedo que, através da experiência artística, podemos ser tocados em lugares tão profundos que, por vezes, transformam nossa maneira de existir no mundo. Por isso fiquei tão enlouquecida ao ler “Vermes Radiantes”. Naquele momento, a possibilidade de fazer teatro presencialmente estava suspensa e não havia garantia de que algum dia isso seria possível novamente. Não sabia como, nem quando, mas me agarrei à força do texto e, junto com Rui, comecei a engendrar possibilidades para que o Brasil tivesse a oportunidade de ser atravessado por este poderoso espetáculo. Que bom que deu certo!
Sesc Pompeia – r. Clélia, 93, Água Branca, região oeste. Qui. a sáb., 20h. Dom., 18h. Até 10/8. Duração: 90 minutos A partir de R$ 18, em sescsp.org.br e nas bilheterias das unidades.
Fonte ==> Folha SP