Por que o mundo deveria se preocupar com stablecoins – 09/12/2025 – Martin Wolf

A imagem mostra uma variedade de moedas de criptomoeda dispostas em uma superfície. Entre as moedas, estão representadas a Dogecoin, Ethereum, Bitcoin e outras criptomoedas. As moedas têm diferentes designs e acabamentos, com algumas em prata e outras em dourado, refletindo a luz de maneira variada.

Há alguns meses, o sogro de um dos meus filhos, que vive no estado de Nova York, enviou o que, para ele, era uma quantia significativa de dinheiro para a família na Inglaterra. O dinheiro nunca chegou. Pior: era impossível descobrir o que havia acontecido. O banco dele entrou em contato com o intermediário que usara, mas foi informado de que o banco de destino no Reino Unido, um dos maiores do país, não responderia a questionamentos.

Perguntei a colegas o que poderia ter ocorrido e me disseram que talvez tivesse a ver com lavagem de dinheiro. Enquanto isso, meu parente estava desolado. Então, após dois meses, o dinheiro reapareceu de repente em sua conta. Ele continua completamente sem saber o que aconteceu nesse intervalo.

Um episódio assim é totalmente distinto de tudo que já experimentei ao transferir dinheiro entre o Reino Unido e a UE (União Europeia). Deste lado do Atlântico, as transferências têm sido invariavelmente confiáveis e rápidas. Isso pode ser um motivo para americanos receberem bem o uso de stablecoins como alternativa ao sistema bancário.

Daniel Davies apontou outros dois: o custo relativamente alto de pagamentos feitos por cartão de crédito (cerca de cinco vezes maior que na Europa!) e o custo extorsivo de remessas internacionais. Ambos refletem a incapacidade de regular oligopólios poderosos nos EUA.

Gillian Tett, do Financial Times, sugeriu outra motivação para a postura favorável do governo Donald Trump em relação às stablecoins em artigo publicado no mês passado. Scott Bessent, secretário do Tesouro dos EUA, enfrenta um problema: o volume enorme de dívida pública que os EUA precisam que o mundo carregue a taxas de juros modestas.

Uma solução, ela observa, é promover o uso amplo de stablecoins denominadas em dólar, não tanto domesticamente, mas em todos os outros lugares. Isso, como Tett aponta, seria bom para o governo dos EUA.

Nenhum desses, porém, é um bom motivo para receber bem as stablecoins em dólar. Como argumenta Hélène Rey, da London Business School, “para o resto do mundo, inclusive a Europa, a ampla adoção de stablecoins em dólar para fins de pagamento equivaleria à privatização da senhoriagem por atores globais”. Isso seria mais um movimento predatório da superpotência.

A alternativa seria os EUA migrarem para um sistema de pagamentos menos oneroso e para um governo menos perdulário, mas nada disso parece provável.

No geral, as stablecoins —ativos apresentados como alternativas digitais ao dinheiro estatal, especialmente o dólar— parecem ter um futuro promissor. Já hoje, como observa Tett, “players como o Standard Chartered preveem que o setor de stablecoins crescerá de US$ 280 bilhões para US$ 2 trilhões até 2028”.

O futuro das stablecoins pode de fato ser promissor. Mas isso deveria ser motivo de comemoração para alguém além dos emissores, dos criminosos de vários tipos e do Tesouro americano? Não.

Sim, stablecoins são muito mais estáveis que, digamos, o bitcoin. Mas sua suposta “estabilidade” tende a se revelar um “conto”, sobretudo quando comparada à de um dólar em espécie ou mantido em um banco.

O FMI, a OCDE e o BIS (sigla em inglês para Banco de Compensações Internacionais) já manifestaram sérias preocupações. Curiosamente, o último vê com bons olhos a ideia de “tokenização”: assim, “ao reunir reservas de bancos centrais tokenizadas, dinheiro de bancos comerciais e ativos financeiros em um mesmo ambiente, um livro-razão unificado pode capturar todos os benefícios da tokenização”.

Ainda assim, o BIS também manifesta preocupação de que as stablecoins não cumpram “os três testes essenciais de unicidade, elasticidade e integridade”. O que isso significa? Unicidade descreve a necessidade de que todas as formas de um mesmo dinheiro sejam trocáveis entre si pelo mesmo valor, a qualquer momento. Essa é a base da confiança no dinheiro. Elasticidade significa a capacidade de realizar pagamentos de todos os tamanhos sem travamentos. Integridade é a capacidade de coibir crimes financeiros e outras atividades ilícitas. Os bancos centrais e demais reguladores desempenham um papel central nisso tudo.

As stablecoins, do jeito que operam hoje, ficam muito aquém desses requisitos: são opacas, facilmente utilizadas por criminosos e têm valor incerto. No mês passado, a S&P Global Ratings rebaixou a USDT, da Tether, a stablecoin mais importante lastreada em dólar, para “fraca”. Isso não é um dinheiro confiável. Moedas privadas fracassaram frequentemente em momentos de crise. É muito provável que isso seja verdade também para as stablecoins.

Suponhamos, então, que os EUA vão promover o uso de stablecoins pouco reguladas, em parte para reforçar o papel dominante do dólar e assim ajudar a financiar seus enormes déficits fiscais. O que outros países deveriam fazer? A resposta é defender-se o melhor que puderem. Isso vale especialmente para os países europeus. Afinal, com sua nova estratégia de segurança nacional, os EUA deixaram bastante claro sua hostilidade aberta em relação à Europa democrática.

Assim, os países europeus precisam considerar como poderiam introduzir stablecoins em suas próprias moedas —mais transparentes, melhor reguladas e mais seguras do que aquilo que os EUA provavelmente produzirão agora. A abordagem do Banco da Inglaterra parece um modelo de bom senso: no mês passado, apresentou um “regime regulatório proposto para stablecoins sistêmicas denominadas em libras”, argumentando que o “uso de stablecoins reguladas pode levar a pagamentos de varejo e atacado mais rápidos, baratos e funcionais, tanto domésticos como internacionais”. Esse parece ser o melhor ponto de partida.

As pessoas hoje no comando dos EUA estão profundamente enamoradas do lema big tech de “mova-se rápido e quebre coisas”. No caso do dinheiro, isso pode ser desastroso.

Sim, há razões para explorar as possibilidades das novas tecnologias para criar sistemas monetários e de pagamentos mais rápidos, confiáveis e seguros. Os EUA certamente precisam disso. Mas um sistema que faz promessas ilusórias de estabilidade, facilita políticas fiscais irresponsáveis e abre a porta para criminalidade e corrupção não é o que o mundo precisa. Devemos resistir a ele.



Fonte ==> Folha SP

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