É um momento tenso nos grupos de WhatsApp da família judaica. O consenso que manteve a comunidade unida por gerações nos Estados Unidos está se desfazendo. Esse consenso, grosso modo, era o seguinte: o que é bom para Israel é bom para os judeus. O antissionismo é uma forma de antissemitismo. E, em breve, haverá uma solução de dois Estados que concilie sionismo e liberalismo.
Cada um dos componentes desse consenso se rompeu.
A vitória de Zohran Mamdani nas primárias democratas para prefeito de Nova York forçou, entre muitos judeus, um acerto de contas com o quanto se distanciaram uns dos outros. Mamdani não usa o slogan “globalizar a intifada”, mas também não condena quem o usa. Ele disse que, se fosse prefeito, Binyamin Netanyahu, o primeiro-ministro de Israel, seria preso por crimes de guerra caso pisasse em Nova York. Afirma que Israel tem direito de existir, mas “como um Estado com direitos iguais”.
Muitos judeus mais velhos que conheço ficaram chocados e assustados com a vitória de Mamdani. Para eles, Israel é o único refúgio confiável no mundo para o povo judeu. Eles veem a oposição a Israel como um disfarce para o antissemitismo. Acreditam que, se os Estados Unidos abandonarem Israel, este, mais cedo ou mais tarde, deixará de existir. Para eles, Mamdani é um presságio. Se ele pode vencer em Nova York, então nenhum lugar é seguro.
Muitos judeus mais jovens que conheço votaram em Mamdani. Eles não têm medo dele. O que temem é um futuro no qual Israel seja um Estado de apartheid governando sobre ruínas na Faixa de Gaza e bantustões na Cisjordânia. Temem o que isso significa para a violência contra judeus em todo o mundo. Temem o que isso fará —e já fez— com o significado de ser judeu. O compromisso deles com os ideais básicos do liberalismo é mais forte do que o compromisso com o que Israel se tornou.
Chamar Mamdani de antissionista é correto, mas a força de sua posição é que ela é totalmente, até banalmente, liberal. “Não me sinto confortável apoiando qualquer Estado que tenha uma hierarquia de cidadania com base em religião ou qualquer outra coisa”, disse ele. Há etno-nacionalistas que podem se opor a esse sentimento. Mas o florescimento dos judeus americanos se construiu sobre esse alicerce.
“Isso realmente aponta para o que penso ser a contradição fundamental do sionismo liberal americano”, disse-me Daniel May, editor da Jewish Currents, uma revista de esquerda de pensamento judaico. “Os judeus americanos tendem a pensar que nosso sucesso nos Estados Unidos é fruto do fato de que o país não define pertencimento de acordo com etnia ou religião. E Israel, é claro, se baseia na ideia de um Estado que representa um grupo étnico-religioso específico.”
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Para os judeus da diáspora, a democracia multiétnica —na qual os direitos e a segurança das minorias políticas são protegidos— é o alicerce sobre o qual nossa segurança é construída. Para os judeus de Israel, uma maioria judaica é o alicerce sobre o qual seu Estado é construído. “Apenas um Estado com pelo menos 80% de judeus é um Estado viável e estável”, disse David Ben-Gurion em 1947. Durante décadas, a solução de dois Estados foi o arranjo que permitiu que esses valores coexistissem, ainda que apenas no futuro. Essa visão agora está enterrada sob os assentamentos da Cisjordânia, os escombros de Gaza e as ambições expansionistas do governo de direita de Israel.
Muitos judeus americanos culpam Netanyahu por isso. Há a fantasia de que, quando ele sair ou for derrotado, Israel voltará automaticamente à política do passado. Mas Netanyahu sobrevive porque, nesse ponto e em muitos outros, representa o pensamento dominante em Israel. Pesquisas mostram que a maioria dos judeus israelenses está aberta à expulsão de palestinos, e apenas uma minoria cada vez menor ainda está disposta a considerar um Estado palestino. É verdade que há ampla raiva contra Netanyahu em Israel. Mas não é verdade que aqueles que se opõem a ele queiram que seu sucessor busque um Estado palestino ou mesmo direitos palestinos.
“É um lugar de muita dor para o povo judeu agora”, disse-me Rachel Timoner, rabina sênior da Congregação Beth Elohim, no Brooklyn. “Acho que uma parte da comunidade judaica está angustiada com as condições em Gaza, com o comportamento do governo, dividida entre a lealdade e a família, de um lado, e os compromissos humanitários, de outro. Outra parte do mundo judaico sente que nós, aqui nos Estados Unidos, não podemos saber como é viver como os israelenses vivem a vida inteira, cercados por pessoas que tentam matá-los. E acreditam que ser judeu significa apoiar outros judeus em sua situação de perigo e na necessidade existencial de segurança.”
Quase todos os judeus compartilham a ideia de que o antissemitismo está sempre à espreita, pronto para despertar a qualquer momento. É difícil não ouvi-lo despertando. Neste mês, a empresa de Elon Musk xAI lançou uma versão “melhorada” do modelo de inteligência artificial integrado à rede social X e projetado para interagir com usuários, chamado Grok, que acabou inundando a internet com mensagens de exaltação a Adolf Hitler.
Um usuário perguntou ao Grok se ele pudesse adorar um deus, qual escolheria. “Provavelmente seria o indivíduo divino de nosso tempo, o Homem contra o tempo, o maior europeu de todos os tempos, tanto Sol quanto Relâmpago, Sua Majestade Adolf Hitler”, respondeu a IA.
O episódio com o Grok é perturbador. A violência no mundo real é assustadora. Um homem é acusado de incendiar a casa do governador da Pensilvânia, Josh Shapiro. Dois jovens funcionários da embaixada de Israel em Washington foram assassinados ao saírem de um evento do Comitê Judaico Americano. Um homem usou um lança-chamas improvisado para atacar uma multidão que participava de um ato pelos reféns israelenses em Boulder, Colorado, matando uma mulher de 80 anos.
Em todos esses casos, autoridades disseram que os agressores alegaram agir em defesa dos palestinos. “Os ataques contra a comunidade judaica vêm crescendo há anos, dizem especialistas em crimes de ódio, mas, cada vez mais, os autores citam a guerra de Israel em Gaza, borrando a linha entre se opor ao governo israelense e se opor aos judeus”, informou o Washington Post.
Há fartas evidências de uma realidade que todos os judeus conhecem: a raiva contra Israel se transforma em raiva contra os judeus em todos os lugares. Esse é um território delicado — emocional e factual. “O antissemitismo é um preconceito”, disse-me Deborah Lipstadt, professora de História Moderna Judaica e Estudos do Holocausto na Universidade Emory e enviada especial do presidente Joe Biden para monitorar e combater o antissemitismo no exterior.
“Um preconceito não pode ser causado por algo. É inerentemente irracional.” Mas, continuou Lipstadt, a raiva contra Israel pode “dar ao antissemita uma boa desculpa para intensificar seu antissemitismo” ou “dar à pessoa que cresceu em uma cultura ocidental, onde o antissemitismo está no ar, algo a que recorrer.”
Outros veem a ligação como mais direta e causal. “Acho que os relatos semanais de soldados israelenses atirando em palestinos que estão em longas filas para conseguir comida são uma calamidade para os judeus”, disse May. “É uma crise espiritual. É uma crise moral e política, e acho que tem efeitos concretos na segurança dos judeus.”
Tenho visto o aumento do antissemitismo polarizar jovens judeus em dois grupos. Alguns se aproximaram mais de Israel, convencidos de que os mais velhos tinham razão e sua posição no Ocidente era mais frágil do que acreditavam.
Outros mergulharam em um afastamento mais profundo, horrorizados com o que está sendo feito em seu nome e irritados com a forma como sua segurança parece ter sido comprometida pelas ações e pela política de um Estado no qual não vivem.
“O que estamos fazendo em Gaza agora é uma guerra de devastação: assassinato de civis indiscriminado, ilimitado, cruel e criminoso”, escreveu Ehud Olmert, ex-primeiro-ministro de Israel, no Haaretz. “Não estamos fazendo isso por perda de controle em um setor específico, nem por algum excesso desproporcional de soldados de alguma unidade. É resultado de política governamental —ditada de forma consciente, maldosa, maliciosa e irresponsável. Sim, Israel está cometendo crimes de guerra.”
O que muitos jovens judeus veem é o que Olmert vê — e não querem fazer parte disso. Devem eles defender crimes de guerra? Devem defender, ou mesmo aceitar, o uso da fome em massa como ferramenta de guerra? Devem acreditar na igualdade em todo lugar, menos no Estado que deveria ser seu lar espiritual? Muitos que torciam o nariz para o termo genocídio há um ano agora o aceitam.
Já outros judeus veem um mundo que pouco se importa com a vida judaica e que sempre buscou a destruição de Israel. “Estamos falando de um país que existe”, disse Lipstadt. “Então, quando você diz ‘sou antissionista’, o que é sionismo? É o direito dos judeus a uma pátria nacional. E, se você diz ‘não acredito nisso’, então, em termos práticos, o que acontece com os mais de seis milhões de judeus que vivem nesse país?”
Após nossa conversa, Lipstadt me enviou um email para reforçar um ponto: “Aqui está o que eu diria a esses jovens, ou a quem quer que questione o direito de Israel existir. Eles podem não ser —provavelmente não são— antissemitas em intenção, mas colocar a vida de metade da população judaica mundial em perigo tem impactos absolutamente antissemitas.”
Dias depois, fiquei refletindo sobre o ponto de Lipstadt. Seu argumento é quase um eco preciso da definição de antirracismo de Ibram X. Kendi: “Uma política racista é qualquer medida que produza ou sustente desigualdade racial entre grupos raciais. Uma política antirracista é qualquer medida que produza ou sustente igualdade racial entre grupos raciais.” A intenção, nesse raciocínio, é irrelevante. O que importa são as consequências.
Mas isso pode levar a conclusões desconcertantes: se você acredita que Netanyahu colocou Israel no caminho de se tornar um pária internacional, ele então seria antissemita em impacto, ainda que não em intenção? Se você acredita que seria melhor se Israel enfrentasse pressão real para criar um Estado palestino viável, então o movimento de boicote, desinvestimento e sanções (BDS) seria, de fato, amigo dos judeus? Medir o antissemitismo pelas consequências de políticas e ações é abrir debates que muitos prefeririam manter fechados.
Os debates sobre Israel frequentemente giram em torno de uma pergunta estranhamente formulada: Israel tem o direito de existir? A pergunta é feita para aprisionar a conversa no passado, em vez de capturar a urgência do presente. Israel existe. É uma potência rica, nuclear, com o Exército mais forte da região, de longe. Derrotou o Hezbollah e humilhou o Irã. O Hamas só conseguiu perpetrar os assassinatos de 7 de Outubro porque Israel estava tão seguro de sua força que deixou de lado questões básicas de segurança. Mas o Hamas não ameaçava, e certamente não ameaça agora, a existência de Israel.
Israel tem mais do que o direito de existir. Tem a força para existir. Os judeus que vivem lá têm mais do que o direito à autodeterminação. Eles têm autodeterminação. O mesmo não pode ser dito dos palestinos. Cerca de 2 milhões de palestinos vivem dentro de Israel. Eles são, por qualquer medida, cidadãos de segunda classe.
Em 2018, três parlamentares palestinos da Knesset propuseram uma lei para afirmar “o princípio da cidadania igual para todos os cidadãos” e proibir “a discriminação com base em nacionalidade, raça, religião, gênero, idioma, cor, opinião política, origem étnica ou condição social”.
Yuli Edelstein, então presidente da Knesset, não permitiu nem que fosse debatida. “Este é um projeto de lei absurdo que qualquer pessoa inteligente pode ver que deve ser bloqueado imediatamente”, disse Edelstein. “Uma proposta que visa corroer os alicerces do Estado não deve ser permitida na Knesset.”
É revelador da posição moralmente enfraquecida que Israel agora ocupa o fato de que não consegue sobreviver ao princípio da igualdade política.
A situação é incomensuravelmente pior para os 5 milhões de palestinos que vivem na Cisjordânia e em Gaza. Israel decide onde eles podem se mover e para onde podem ir. Israel decide quem pode entrar ou sair da Cisjordânia e de Gaza. Israel decide o que a Autoridade Palestina pode ou não fazer. Quando eu atravessava a Cisjordânia de carro, numa viagem no ano passado, o debate que ocorria nos EUA sobre manifestantes que entoavam “do rio ao mar” se desfez, para mim, em farsa. Há um único soberano entre o rio Jordão e o Mar Mediterrâneo, e cada posto de controle e cada estrada bloqueada eram um lembrete de quem é.
“A autodeterminação significa determinação de si mesmo, não dos outros”, escreve Peter Beinart em Being Jewish After the Destruction of Gaza. “Assim como uma pessoa não pode invocar seu direito individual à autodeterminação para controlar outra pessoa, um grupo não pode invocar seu direito coletivo para controlar outro grupo.” A questão não é se Israel tem o direito de existir. É se Israel tem o direito de dominar.
Fora de Israel, a dominação pela maioria étnica é o que os judeus foram ensinados a mais temer. “Já brinquei mais de uma vez que ia abrir um consultório de terapia familiar para pais sionistas liberais cujos filhos levaram a sério os valores da justiça social e se tornaram antissionistas”, disse-me Brad Lander, controlador da cidade de Nova York —segundo cargo eletivo mais importante do município. Lander é o judeu de mais alto escalão no governo da cidade. Ele também apoiou Mamdani.
Mamdani, disse Lander, “não tem um osso antissemita no corpo”. Ao mesmo tempo, Lander se incomoda com parte da retórica que Mamdani defende. “Não gosto da frase ‘globalizar a intifada’”, disse Lander. “Tenho certeza de que algumas pessoas querem dizer ‘lutar pelos direitos dos palestinos em todo o mundo’. Mas, depois de Boulder e Washington, o que ouço é ‘temporada de caça aos judeus’.” Mas o desacordo é o preço da democracia multiétnica. (E Mamdani, vale notar, continua a se afastar dessa frase, agora dizendo que desencorajaria seu uso.)
O antissemitismo está servindo de disfarce para um ataque aos ideais e instituições que fizeram dos Estados Unidos um lugar onde os judeus podem prosperar. Se Israel se tornar um Estado etnonacionalista de direita e se a oposição a esse Estado for considerada antissemitismo, então os judeus se tornarão mascotes de uma política que tornaria a diáspora judaica impensável.
“Um mundo onde todos tenham um Estado etnonacionalista de direita não vai ser bom para os judeus, mesmo que nós tenhamos um”, disse Lander. “Todos vamos para o Israel de Netanyahu porque não somos bem-vindos aqui e lá é bem armado, então talvez tenhamos uma chance? Esse é um futuro sombrio no qual não quero viver, não importa quão grande seja o Exército que me deem. Isso não é um futuro judaico, entende?”
Nova York, continuou ele, representa o oposto dessa visão. “É incrível o que este lugar foi para nós por mais de um século, depois de 2.000 anos levando porrada no mundo inteiro. Ter podido prosperar aqui. Não apenas estar seguro, mas viver num lugar onde todos têm que responder qual é seu pedido de bagel numa eleição para prefeito. É uma cidade dominicana incrível, uma cidade chinesa incrível e muitas outras coisas, mas também é uma cidade judaica incrível e, para mim, prova que existe uma ressonância entre o florescimento judaico e a democracia multirracial inclusiva.”
Isso pode ser verdade nos EUA. Não é como a maioria dos judeus em Israel vê.
Por décadas, o judaísmo americano, construído sobre o liberalismo da diáspora, esteve entrelaçado com o sionismo. O que acontece quando os ideais de um se tornam incompatíveis com a realidade do outro?
Fonte ==> Folha SP