Quem é “o Congresso”? Na crise entre Executivo, que costuma vir com nomes próprios, e Congresso Nacional, seria oportuno que o jornal indicasse de modo menos abstrato de quem fala quando fala no Legislativo.
Embora sintetizados em seus presidentes, hoje Hugo Motta (Republicanos-PB) e Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), tanto a Câmara quanto o Senado ainda contam com a vantagem de uma certa falta de rosto e, portanto, de cobrança.
O problema não é novo nem exclusivo da Folha. Mas, num texto recente, o jornal afirmava que “a cúpula do Congresso planeja aprovar um calendário que obrigará o governo Lula (PT) a executar as emendas parlamentares ao Orçamento antes da eleição de 2026”. É uma formulação comum, em que o Congresso é essa entidade amorfa, enquanto o governo é bem delimitado num nome específico.
O texto segue: “O Congresso diz que o calendário evitará a demora que ocorreu neste ano”. O “Congresso” diz? Quem diz?
Assim como o mercado se transformou numa entidade fluida que precisa ser reexplicada e reinterpretada de tempos em tempos, o Congresso acaba também fazendo uso de sua personalidade espectral. Com muitos rostos possíveis, consegue se descolar de imagem e cobrança fixas.
Neste momento, o antagonismo com o governo ficou representado em Hugo Motta, que acabou alvejado por hashtag personalizada no contra-ataque petista nas redes sociais. O fato, porém, é que há ainda um vasto contingente que só aparece para recolher as emendas.
Um leitor escreveu à ombudsman com um apelo que guarda relação com essa questão. “Gostaria que fosse feita uma reportagem sobre os deputados federais que NÃO querem que o projeto [do Imposto de Renda] avance na Câmara. (…) Por gentileza, ajudem a população.”
É mesmo difícil manter uma cobertura que dê conta da estrutura multicéfala do Legislativo federal. Continua a ser um desafio para o jornalismo encontrar mais e melhores maneiras de mostrar direito quem são e o que fazem todos ou ao menos o grosso desses representantes. Não é algo simples nem barato, mas se impõe.
Há também um ponto levantado pelo colunista Thiago Amparo em sua crítica recente à cobertura do caso do IOF. “Até como picuinha o roteiro jornalístico fica ruim: se é para sabermos fofocas, ao menos deveríamos saber quais empresários pressionaram Hugo Motta e colegas”.
A picuinha não parece ter sido detalhe na crise do IOF. Mas seu peso ficou restrito a menções esparsas em colunas. A de Adriana Fernandes apontava: “Os mais bem informados em Brasília enxergam a sombra do presidente do PP, Ciro Nogueira, e do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha no episódio”.
Há alguns dias, Alvaro Costa e Silva também lembrou que o projeto que aumenta o número de deputados de 513 para 531 é de “Dani Cunha, filha de Eduardo Cunha, que inventou Arthur Lira, que engendrou Hugo Motta.”
Essas relações, porém, custam a alcançar as reportagens. Não bastasse o vaivém econômico do IOF, o leitor acaba perdido também no vaivém político.
No início da semana, leitores também questionaram, com razão, por que a Folha deu o título sobre a vergonha institucional apenas para o Supremo Tribunal Federal (“Datafolha: 58% dizem ter vergonha dos ministros do STF; 30% falam em orgulho”), poupando Câmara e Senado do destaque. O índice de pessoas que diziam ter vergonha do STF era idêntico ao da Câmara e um ponto menor que o do Senado. Faria mais sentido elencar a trinca.
A sugestão de um leitor foi na linha de um desempate pelo orgulho: “Datafolha: 30% dizem ter orgulho do STF; 28% falam o mesmo dos deputados federais. Ficou de bom tamanho? Talvez melhor assim, para não inflar demais o ego de Hugo Motta e Davi Alcolumbre?”.
Como qualquer um que estava vendo a disputa do governo com o Congresso, Jair Bolsonaro aproveitou seu comício na avenida Paulista para pedir o que parece, de fato, importar na crise do presidencialismo de coalizão. “Se vocês me derem isso [50% da Câmara e do Senado], não interessa onde esteja, aqui ou no além, quem assumir a liderança vai mandar mais que o presidente da República”, disse no domingo, sonhando acordado no alto de um caminhão.
Foi o suficiente para a Folha anunciar que “Bolsonaro escancara plano por ‘poder paralelo’ no Congresso mesmo com direita no Planalto”.
Mesmo que Bolsonaro já esteja inelegível e ocupando o banco dos réus por tentativa de golpe de Estado, é questionável o uso de “poder paralelo” para descrever suas ambições legislativas. Pode soar mal na voz do ex-presidente, dado seu histórico, mas é uma leitura até óbvia a respeito do empoderamento parlamentar no Brasil das emendas e das sucessivas derrotas do Executivo.
Ao noticiar a resposta do ex-presidente, a Folha afirmou primeiro que ele “ensaia[va] recuo”. Mas Bolsonaro contestava a própria ideia que o jornal havia formulado a partir do discurso. Depois, o título foi mudado para informar que Bolsonaro negava a busca por “poder paralelo”. Um comentarista questionou: é ilegal querer ter maioria no Legislativo? Assim também fica difícil.
Fonte ==> Folha SP