Rodrigo Portella dirige Galpão em adaptação de Saramago – 11/09/2025 – Mise-en-scène

Rodrigo Portella dirige Galpão em adaptação de Saramago - 11/09/2025 - Mise-en-scène

Em uma vigorosa montagem, o Grupo Galpão ocupa o Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro, com sua adaptação do romance de José Saramago (1922-2010), “(Um) Ensaio Sobre a Cegueira”. Sob a direção de Rodrigo Portella, a companhia mineira cria uma experiência cênica da distopia saramaguiana que dialoga diretamente com as urgências e a brutalidade do nosso tempo. O resultado é um espetáculo que aposta na crueza da teatralidade e na força do trabalho coletivo para confrontar o público com sua própria cegueira.

A direção de Portella, que também assina a dramaturgia, faz uma escolha fundamental ao desnudar o fazer teatral. Em cena, os atores do Galpão –um elenco bastante coeso e dedicado ao ofício– manipulam a luz, movem objetos e constroem as paisagens da narrativa à vista da plateia. Essa metalinguagem não distancia, pelo contrário, reforça a ideia de que a história que está sendo contada é uma construção, um ensaio, assim como as estruturas sociais que normalizam o absurdo.

A “treva branca” que acomete a sociedade no romance de Saramago é traduzida por Portella como uma metáfora da atualidade: a incapacidade de enxergar o outro em meio a um bombardeio de imagens e desinformação. A montagem atualiza a distopia para um tempo de polarização e desumanização, onde a empatia se torna uma prova de perseverança. Essa visão é potencializada por uma encenação que valoriza o gesto simbólico em detrimento do naturalismo. Uma simples garrafa de água ou o vento de um ventilador folheando um livro adquirem densidade e múltiplos significados.

Um dos grandes trunfos da montagem é a criação de uma experiência imersiva. O espetáculo oferece a possibilidade de o espectador participar da cena de olhos vendados, no que é chamado de “ingresso experiência”. Essa imersão sensorial radicaliza a proposta do romance, colocando o público como participante ativo da epidemia, sentindo na pele o desamparo e a dependência do outro.

A paisagem sonora, com direção musical e trilha original de Federico Puppi, executada ao vivo pelo elenco, funciona como um organismo pulsante que dita o ritmo e a atmosfera da encenação. A música não é apenas um adereço, mas um elemento dramatúrgico que sustenta a tensão, a angústia e os raros momentos de respiro da narrativa.

A cenografia de Marcelo Alvarenga e o figurino de Gilma Oliveira colaboram para a construção de um universo asséptico e opressor, que gradualmente se deteriora junto com as relações humanas. A iluminação, assinada por Rodrigo Marçal e pelo próprio diretor, é precisa ao criar os contrastes entre a luz excessiva da cegueira branca e as sombras da condição humana que ela revela.

“(Um) Ensaio Sobre a Cegueira” do Grupo Galpão é um teatro que exige entrega. Com mais de duas horas de duração, a montagem é um mergulho denso e, por vezes, desconfortável naquilo que o ser humano tem de mais primitivo e, paradoxalmente, na sua capacidade de encontrar humanidade em meio ao caos. Ao final, a sensação é de ter sobrevivido a uma experiência que reafirma o valor do encontro, da escuta e, sobretudo, do ato de ver.

Três perguntas para…

…Rodrigo Portella

O que no romance “Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago mais lhe atraiu para transformá-lo em uma peça de teatro, e que aspectos da história você sentiu que eram urgentes para se dialogar com o público hoje?

O que mais me atraiu foram os muitos temas que dialogam com a atualidade. Mas se eu pudesse destacar um elemento, seria a relação entre o individual e o coletivo.

Li o romance em 1999, perto da virada do milênio, quando tínhamos uma expectativa muito diferente de futuro. Havia uma perspectiva mais coletiva, que contrasta profundamente com o que vivemos hoje. Não tínhamos vivido a pandemia, essa polarização ou a desconfiança nas instituições como agora.

Quando li o romance naquela época, apesar de toda sua crueza e violência, enxerguei nele uma perspectiva de insurgência do coletivo. Agora, ao retomar a obra para o teatro, meu desejo é tentar recuperar um pouco daquele sentimento, porque Saramago cria uma distopia justamente para nos mostrar que a saída para a dor do mundo está no encontro com o outro. É esse senso de coletividade que cada vez nos falta mais, e isso para mim é muito importante.

A peça deixa os mecanismos do teatro bastante expostos, com atores manipulando luz e cenário. Como essa escolha estética dialoga com o tema central da cegueira e da percepção?

Essa escolha estética de deixar os mecanismos do teatro expostos dialoga com o tema da cegueira de duas formas fundamentais.

Primeiro, funciona como uma metáfora direta da proposta do Saramago. Ao revelar o que normalmente está oculto –os cabos, as lâmpadas, os atores operando a cena– estamos praticando esse “ver além” que a obra propõe. Assim como o romance nos convida a questionar o que está por trás das aparências, a encenação revela seus próprios processos de construção. É uma analogia potente com nosso tempo: recebemos informações constantemente, mas raramente nos perguntamos sobre o que há por trás delas.

Segundo, essa opção reflete minha concepção do teatro como arte da imaginação. Diferente do cinema, que constrói uma realidade completa para o espectador, o teatro –como a literatura– acontece na mente de quem observa. Ao não esconder os mecanismos, estabelecemos um pacto com o público: nós sugerimos, mas é cada espectador quem constrói seu próprio manicômio, sua própria quarentena. Os atores, ao interpretarem múltiplos personagens sem transformações radicais, mantêm sua identidade para que o público complete a criação. Essa experiência coletiva mas individualizada ecoa profundamente o que Saramago propõe: enxergar requer participação ativa, requer o exercício constante de imaginar o outro.

A opção de oferecer uma experiência imersiva com vendas nos olhos para parte do público é bastante ousada. O que você espera que essa vivência sensorial diferente provoque no espectador?

A opção pela experiência imersiva com vendas nos olhos vai muito além do sensorial. Meu objetivo central é abrir espaço para o coletivo, dissolver essa fronteira entre palco e plateia, que serve como metáfora para todas as fronteiras que erguemos hoje, não apenas territoriais ou culturais, mas principalmente as ideológicas.

Tenho um desejo genuíno de trazer o público para dentro da experiência, criando um espaço comum onde até mesmo quem permanece na plateia se sinta representado dentro da história, parte integrante da fábula e do jogo cênico.

Na prática, claro, a experiência sensorial esteve presente durante todo o processo – investimos bastante na sonoridade e na visualidade do espetáculo. Mas, honestamente, o aspecto sensorial é o que menos me interessa. O que verdadeiramente me move é essa possibilidade de comunhão, esse encontro entre palco e plateia. Isso, para mim, é o ponto central e mais significativo da proposta.

Teatro Carlos Gomes – praça Tiradentes s/nº – Centro, Rio de Janeiro. Qua. a sex., 19h; sáb. e dom., 17h. Até 14/9. Duração: 140 minutos. A partir de R$ 17 (meia-entrada / ingresso promocional). Ingresso experiência: R$ 40 (meia-entrada) em ingressosriocultura.com.br



Fonte ==> Folha SP

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