Selva devolveu 4 crianças com vida após acidente de avião – 12/03/2025 – Rede Social

Aviso

Como quatro crianças indígenas não foram engolidas pela floresta após sobreviverem a um trágico acidente aéreo na Amazônia colombiana em 1º de maio de 2023.

Esse é o ponto de partida de “40 Dias na Floresta” (Ed. Matrix, 246 págs.), livro do americano Mat Youkee, sobre o midiático resgate dos irmãos Lesly, 13, Soleiny, 9, Tien, 5 e Cristin, 11 meses, que perderam a mãe Magdalena Mucuty, 33, indígena da etnia uitoto, na queda do Cessna HK-2803 da Avianline Charters.

O mundo acompanhou a dramática busca pelas crianças após o avião ser encontrado com o nariz fincado no chão da floresta com os corpos do piloto e dos outros dois adultos a bordo.

A operação de resgate das crianças mobilizou Exército, guarda indígena e até um curandeiro, numa narrativa que já rendeu a série “As Crianças Perdidas”, da Netflix, e vai inspirar um filme em Hollywood pelo estúdio do diretor Ridley Scott.

Recém-lançado no Brasil, o livro relata as condições em que vivem a população indígena na Amazônia e o pano de fundo político de uma operação militar em uma região sob os impactos de uma guerra contra a guerrilha e o narcotráfico.

Uma adolescente indígena é a heroína da trama. A garota usou a sabedoria passada pelos pais e avós para sobreviver na selva. Os conhecimentos ancestrais dos voluntários indígenas que se juntaram à força-tarefa militar também foram fundamentais para a localização dos destroços e das crianças.

Youkee, que vive na Colômbia há 15 anos e escreve para publicações internacionais como The Guardian, fez minuciosa reconstrução do caso.

“Após o resgate as questões pareceram se multiplicar. Quem são essas pessoas? Por que estavam a bordo do avião? Por que as equipes de resgate levaram tanto tempo para achar as crianças? Como elas conseguiram sobreviver?”, indagava-se o jornalista.

Entre o final de 2023 e o início de 2024, ele foi em busca de respostas. “Por trás do milagre feliz que foi o resgate daquelas crianças com vida, a história delas devia carregar verdades mais amplas e duras sobre as circunstâncias enfrentadas pelos povos da Amazônia colombiana”, conclui a autor.

“São populações que vivem na pobreza, dominadas por grupos armados, vendo sua cultura ser carcomida pela economia extrativista e as suas necessidades serem negligenciadas pelo Estado.”

A seguir, um resumo de momentos emblemáticos de um drama que se desenrola para além da floresta.

EM FUGA

Magdalena Mucutuy, 33, planejava deixar a floresta com quatro dos seis filhos rumo a Bogotá, onde seu namorado Manuel Ranoque, a aguardava.

Cristin, o bebê de colo, e Tiem eram frutos dessa nova relação. Soleiny e Lesly eram filhas do primeiro casamento. Em Araracuara, a uma hora de viagem rio abaixo de onde vivia, Magdalena embarcaria no fatídico voo para San José del Guaviare.

De lá, a família rumaria de ônibus para Bogotá, onde a jovem mãe indígena pretendia começar uma vida longe da floresta com o parceiro que partira antes sob ameaça da guerrilha.

UM VOO QUE COMEÇA MAL

O Cessna taxiou para a cabeceira leste da pista. Menos de quarenta metros depois, a roda esquerda do trem de pouso entrou numa vala, fazendo a aeronave virar para o lado e parar na beirada da pista.

O piloto Hernando Murcia pediu ajuda dos soldados da base do Exército para endireitar o avião. Um cabo chegou a dizer para Magdalena que se fosse passageiro não voltaria a embarcar. Na sua segunda tentativa, o Cessna HK-2803, que sofrera uma acidente um ano antes, decolou.

A QUEDA

Da cabine, o comandante gritava ordens para os seis passageiros. Houve o chiado rápido da folhagem raspando contra as asas e depois uma pancada forte. O Cessna tombou violentamente e mergulhou de nariz no solo da floresta.

Quando Lesly voltou a si, ela sentiu o peso do corpo pendendo para a frente e a pressão do cinto de segurança ao redor da sua cintura. O encosto de couro preto do assento estava coberto de sangue.

Ela viu o corpo da mãe debruçado para a frente, assustadoramente imóvel. Ouviu então um choro de bebê.

PRIMEIROS SOCORROS

Por entre as dobras do corpo de Magdalena, surgiu a perna gorducha de Cristin. Com uma dor lancinante no pé, Lesly tirou a irmã caçula do colo da mãe e soltou os cintos de segurança de Soleiny, que tinha machucados na cabeça e no peito, e Tien, que não sofrera nem um arranhão.

Lesly e os irmãos se acomodaram na sombra de uma palmeira. Ela conseguiu puxar as malas na parte traseira do avião. Presa à fuselagem, havia uma caixa amarela com uma lanterna. Ao lado, uma bolsa quadrada preta com uma cruz vermelha.

Era preciso estancar o sangramento da testa. A adolescente puxou uma das fraldas da bolsa de Cristin, pressionou o material absorvente contra a testa e usou ataduras do kit de primeiros socorros.

Em seguida, estendeu uma toalha sobre os galhos mais baixos e cobriu com um mosquiteiro encontrado na bagagem. Por dois dias e duas noites, permaneceram no abrigo.

No terceiro dia, Lesly foi despertada pelo farfalhar de um urubu rondando o avião. As nuvens de moscas tinham ficado maiores. Sentiu o odor acre da decomposição. Não podiam continuar tão perto do Cessna com o cheiro da morte cada vez mais forte.

PERDIDOS NA FLORESTA

Sob a chuva que caía sem parar, elas caminharam sem destino, com as roupas molhadas pesando no corpo. No dia seguinte, Lesly avistou uma palmeira milpesos, uma das árvores mais importantes no mundo dos uitoto.

No meio das fibras, ela podia ver os frutos roxos. Naquele solo hostil ao redor do rio Apaporis, crescia justamente a espécie amazônica capaz de servir de alimento para um bebê.

A polpa amarronzada é dura, mas pode ser amolecida em água morna. Lesly se lembrou das mãos da mãe na bacia com água, espremendo os frutos até que as sementes se soltassem, massageando entre os dedos a mistura nutritiva e proteica que substituía o leite materno.

As crianças catavam os frutos aos punhados. Lesly conhecia uma outra maneira de consumi-los: deixar na boca por tempo suficiente para o calor e a umidade da saliva amolecessem a polpa

Ela deu a Soleiny e Tien um fruto para cada um chupar e pôs um na própria boca. Assim que começou a sentir o fruto ceder, ela o misturou com água, amassou bem na palma da mão e alimentou Cristin.

Os quatro voltaram sem querer ao local da queda do avião dias depois. Lesly pegou novas mudas de roupas na bolsa de viagem da mãe e achou um saco plástico cheio de farinha.

Enquanto as crianças trocavam de roupa, a menina reparou que os braços e as pernas delas estavam cobertos de marcas vermelhas de picadas de insetos.

No pulso esquerdo de Soleiny havia os primeiros sinais da leishmaniose. A adolescente pegou uma atadura para enrolar as feridas e evitar que a ulceração se alastrasse. Rezou para que a caçula que estava gripada não tivesse febre.

BUSCAS CAÓTICAS

A procura pelos destroços foi feita inicialmente de maneira caótica por três grupos distintos. Só mais tarde os esquadrões militares e os voluntários indígenas passaram a atuar em conjunto.

Passaram-se nove dias na floresta sem sinal do Cessna acidentado. Até que foram encontrados uma mamadeira e os restos de um maracujá com marcas de dentes de uma criança.

Um tempo depois, um indígena grita na mata: “Olhem! Uma casa azul!” Era o Cessna fincado na vertical, cercado por uma nuvem de moscas. Três corpos estavam dentro do avião em estado avançado de decomposição.

O CURANDEIRO

Os uitoto reverenciam o conhecimento de Dom Rubio sobre a floresta. O curandeiro, que dedicara a sua vida à lida com os espíritos sombrios da mata, juntou-se à equipe de buscas a pedido dos pais e do companheiro de Magdalena.

Rubio relata no livro que ouvia as vozes e o choro das crianças. Em 9 de junho, quando elas foram finalmente localizadas, ele fez um ritual de madrugada. Tomou o yagé, bebida com propriedades alucinógenas extraída de uma videira.

Ele conta que, enquanto seu espírito viajava pela floresta, sentiu a presença de um duende que estaria em posse das crianças e não tinha intenção de devolvê-las.

Quando acordou, o xamã informa que as crianças estavam a 2,5 quilômetros de distância. Os soldados começaram a se preparar para a busca final, mas o curandeiro seguiu com um grupo formado exclusivamente por indígenas. Uma hora mais tarde, eles ouviram o som do choro de um bebê.

MILAGRE

Depois semanas e semanas de espera, Lesly estava deitada no chão debaixo do mosquiteiro chupando sementes de milpesos. Nos últimos nove dias, haviam permanecido naquela clareira, seguindo instruções de um panfleto jogado pelas equipes de resgate.

Ouviu um farfalhar na vegetação. Cristin soltou um lamento. “Lesly, nós somos família”, dizia um dos indígenas, ao se aproximar, formando um círculo ao redor das crianças. Tien ergueu os olhos e falou: “A minha mãe morreu”.

“Estou com fome”, disse Lesly, que só então viu homens de uniformes. Um dos soldados usou o transmissor de rádio para anunciar: “Milagre!”.

CRIANÇAS DA FLORESTA

Os quatro haviam sobrevivido sozinhos por 40 dias em um dos ambientes mais hostis do planeta. A façanha era um testemunho do amor fraterno e da engenhosidade e resiliência da cultura uitoto.

No hospital, uma multidão de repórteres acompanhou a chegada de Andres, pai das duas mais velhas. Ele foi levado até o leito de Lesly, que não via fazia mais de seis anos. A menina parecia um cadáver, recorda-se ele.

Os quatro ficaram mais de um mês no hospital até recuperar o peso. Tinham passado frio e fome, mas contam que não sentiam medo. Sentiam-se à vontade na floresta.

DEPOIS DA TRAGÉDIA

Em 14 de julho de 2023, as crianças foram transferidas para um abrigo nos subúrbios de Bogotá.

Em 11 de agosto, Ranoque foi preso acusado de ter estuprado Lesly. Os abusos teriam começado quando ela tinha dez anos. O padrasto alega inocência. Diz que a determinação em encontrá-las é prova da sua devoção às duas enteadas.

Continua em andamento uma batalha legal pela custódia dos quatro irmãos, envolvendo pais e avós. Até a conclusão do livro, ele permaneciam sob a tutela do governo colombiano sem poder voltar a viver na floresta.



Fonte ==> Folha SP

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