Reconhecer que a mais antiga democracia do mundo já não é uma democracia plena é uma derrota difícil de admitir, e que leva tempo a ser reconhecida. Primeiro é preciso capinar e arar o terreno, com alertas de políticos e de analistas. Em seguida surgem as confirmações estatísticas nos índices comparativos de democracia, que registram a erosão institucional. Só então virão os reconhecimentos oficiais por parte de países ou organismos internacionais.
A primeira fase está concluída. São dezenas os relatórios técnicos e as declarações públicas de reconhecidos especialistas alertando para a degradação da democracia americana, como as do historiador do Holocausto Christopher R. Browning, da socióloga Kim Lane Scheppele ou do professor de Direito David Pozen. Na lista estão também os cientistas políticos Brian Klaas, Rory Truex, Daniel Stockemer e Steven Levitsky e o economista Joseph Stiglitz, entre dezenas de acadêmicos. Em 2025, a Civicus (uma aliança de ONGs que promovem o fortalecimento da sociedade civil) incluiu os EUA na sua “Lista de Observação” devido a um rápido declínio nas liberdades cívicas e a LASA (Latin American Studies Association) expressou profunda preocupação com a “deterioração da democracia, do Estado de direito e do respeito aos direitos humanos” nos EUA.
Em vez de “democrático”, descrevem o regime atual nos EUA como “autocrata” ou “autoritário competitivo”. Ainda há competição real entre partidos e as eleições continuam a existir, mas o sistema permite manipular resultados em benefício próprio, fragilizando adversários e utilizando o aparato estatal de forma ilegítima ou antidemocrática, sem mecanismos eficazes de contenção.
Argumenta-se que a recusa de Donald Trump em reconhecer resultados eleitorais e a criminalização sistemática de seus opositores abriram um precedente para que parte significativa da elite política passasse a questionar a legitimidade das urnas. O movimento MAGA transformou essa desconfiança em plataforma política permanente, mobilizando milhões de eleitores em torno da ideia de que instituições centrais —tribunais, Congresso, imprensa, universidades— seriam inimigos internos.
Paralelamente, o gerrymandering partidário (manipulação dos limites dos distritos eleitorais para favorecer um partido político), a crescente influência de super PACs no financiamento político, o processo de escolha hiperpartidário dos juízes da Suprema Corte, a expansão contínua do poder executivo e a disseminação de desinformação em escala industrial, amplificada pelas redes sociais, são sinais de grave degradação institucional.
A segunda fase também está encerrada. Na maioria dos índices comparativos internacionais, os EUA deixaram de ser uma democracia plena. Em abril de 2025, o Bright Line Watch atribuiu à democracia americana apenas 49 pontos em uma escala de 0 a 100, a primeira vez abaixo do ponto médio. Segundo o Democracy Index da Economist Intelligence Unit, os EUA caíram para patamares de “democracia imperfeita”, um movimento sem precedentes.
O IDEA Democracy Tracker mostra que, nos últimos seis meses, os EUA apresentaram tendência negativa em categorias como Estado de direito, representação, participação e direitos indicando deterioração em freios institucionais, independência judicial e restrições ao uso do Poder Executivo. Em sua última atualização em março de 2025, o projeto V-Dem da Universidade de Gotemburgo, alertou que os índices de democracia nos EUA registraram uma deterioração substancial e estatisticamente significativa. Naquele momento, Staffan Lindberg, o diretor do V-Dem —a maior base de dados sobre regimes políticos do mundo, medindo cerca de 600 atributos da democracia— afirmou que, mantida a tendência atual, em até seis meses os EUA (ou seja, setembro) deixarão de poder ser classificados estatisticamente como uma democracia.
Resta apenas o terceiro passo: o reconhecimento formal. Mas quem, na comunidade internacional, irá afirmar de forma inequívoca que os Estados Unidos já são uma autocracia? Organismos como a ONU ou a OEA (Organização dos Estados Americanos) dificilmente o farão, receosos de retaliações financeiras. Se a declaração partir de adversários estratégicos como China, Rússia, Irã ou Venezuela, será recebida com sarcasmo. Países do Sul Global tendem a evitar pronunciamentos sobre a política interna de outros Estados. Já a União Europeia tem tradição de adotar discursos claros sobre retrocessos democráticos, mas dificilmente enfrentará Washington num momento de intensa negociação comercial e geopolítica.
Forma-se, assim, uma teia de interesses não democráticos que impede a comunidade internacional de nomear os EUA como uma não-democracia. No conto “A Roupa Nova do Imperador” (1837), de Hans Christian Andersen, os súditos permaneceram em silêncio por medo, interesse ou conformismo. Quem será, desta vez, a criança que grita que o rei está nu?
Fonte ==> Folha SP