Criticar o presidente Lula, que disse não ter problemas com Israel, me rendeu uma reprimenda em casa e duas diatribes publicadas contra mim nesta mesma Folha.
A reprimenda veio da minha esposa: disse que eu não deveria criticar o presidente mais pró-Palestina que o Brasil já teve. Respondi apenas na medida em que ficaria preservada a felicidade conjugal.
Já os autores das duas diatribes, Demétrio Magnoli e Daniel Golovaty, não merecem, propriamente falando, uma resposta minha. E isto porque responderam a coisas que eu não escrevi e deixaram de responder ao que escrevi de mais importante.
Eles falsificaram o meu texto para construir um Salem Nasser que não sou eu, mas um fantasma que poderia servir de saco de pancada. Falaram desse extremista, desse semeador do ódio, desse obstáculo à paz, desse antissemita obsceno e perverso.
Magnoli menciona uma única frase que eu de fato escrevi, para logo deturpá-la e dela tirar o monstro que eu seria. Já Golovaty, de fato, parece ter delirado um outro texto que não o meu, atribuído a um autor com quem pudesse lutar em suas fantasias de herói. Desta vez, aconteceu de eu encarnar esse dragão imaginário.
Doutores em geografia política, historiadores, psicanalistas deveriam ser pessoas capazes de ler e entender precisamente um texto tão cristalino como o meu. Não os tomarei por ignorantes, no entanto. Imputar-lhes-ei a má-fé. Tentam fazer, com seus exercícios desonestos em torno das palavras e das frases, aquilo que Aristófanes apontava nos sofistas: tentam “fazer com que o argumento mais fraco pareça ser o mais forte.”
Além da má-fé, e antes mesmo dela, digo que há desfaçatez e obscenidade, em, depois de dois anos de genocídio explícito e confessado, apropriado com orgulho por parte do criminoso, inflar o peito e levantar-se indignado para fazer a defesa de Israel!
Algumas pessoas montam em seu pedestal de correção moral e falam de paz, de combate ao ódio, de direito internacional, mas são incapazes, como dizia Neruda, de “ver o sangue (que corre) pelas ruas!”
Indecentes, eu lhes digo. Não só por se levantarem em defesa do algoz das milhares de crianças que agonizaram sob os escombros, e cujo sangue ainda corre pelas ruas, mas por o fazerem de modo intelectualmente tão desonesto.
Não tenho espaço aqui para listar tudo que, nos dois textos, há de manipulação das palavras, de modificação das frases, de invenção e de omissão. Farei isso com prazer em outro lugar. Darei aqui apenas dois exemplos, para que o leitor se familiarize com o exercício.
Magnoli diz que, ao apontar para o erro de Lula, mencionado acima, eu recorria à “identificação do governo de Netanyahu com a nação israelense”. Onde eu escrevi “Estado,” ele leu “nação.” Ele também usa “Estado judeu” para se referir a Israel.
Com esse expediente, Magnoli substitui a opinião pública israelense e o Estado, ente político, de que eu falava, pelos judeus do mundo: se a nação israelense é igual a Israel, e se Israel é igual ao Estado judeu, então Israel é o Estado de todos os judeus e de ninguém mais além dos judeus. E, ao criticar Israel, eu estaria, como bom antissemita, criticando os judeus do mundo.
Já Golovaty me acusa de usar a imagem do Cristo e de sua paixão para estabelecer um paralelo entre os judeus que o teriam matado e os que hoje matam os palestinos. A coisa não tinha me passado pela cabeça e confesso que não sei se o Cristo existiu de verdade e se foi supliciado. Sei que, de acordo com a Bíblia, seus torturadores eram soldados romanos. Agora, se Golovaty tiver a notícia de que quem hoje suplicia os palestinos não são judeus israelenses, com a devida cumplicidade de cristãos ocidentais, muçulmanos árabes e não árabes e tantos outros, ele deveria contar ao mundo.
Há um vício comum aos dois textos, no entanto, que constitui a ausência fundamental. Eu digo e repito: que Israel é um projeto colonial e racista desde a origem; que Israel ocupa ilegalmente território palestino; que Israel implementa um sistema de apartheid contra os palestinos em todos os territórios sob seu domínio; que Israel empreende um esforço contínuo e velho de décadas de limpeza étnica da Palestina; que, ao menos desde outubro de 2023, Israel comete Genocídio contra os palestinos da Faixa de Gaza.
E digo também: quem quiser defender Israel precisa enfrentar o desafio de negar essas cinco acusações que eu faço. E não é porque sou eu a fazer o desafio; é simplesmente porque, se não puderem negar estas verdades, não há defesa possível para Israel!
Todo o resto será inútil. Não adianta disparar as acusações de terrorismo, de antissemitismo, de extremismo; não adianta ressuscitar, como faz Golovaty, falsas notícias há muito superadas; não adianta recorrer a artifícios retóricos ou criar cortinas de fumaça.
Eu lancei esse mesmo desafio muitas vezes antes do 7 de outubro de 2023 e o fiz ao menos duas vezes nesta mesma Folha desde então, em 10 e 31 de outubro de 2023.
Pois bem, faço-o novamente: esqueçam esse pequeno fantasma, que inventaram e que veem encarnado em mim, com quem querem trocar insultos; enfrentem o debate real!
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Fonte ==> Folha SP