Trupe Ave Lola recria Shakespeare com apenas um ator – 16/09/2025 – Mise-en-scène

Trupe Ave Lola recria Shakespeare com apenas um ator - 16/09/2025 - Mise-en-scène

A genialidade de uma obra clássica reside na sua capacidade de ser desmontada e reconfigurada infinitas vezes, sempre revelando novas camadas de significado. Foi exatamente isso que a Trupe Ave Lola conquistou com a montagem “Sozinho com Romeu e Julieta”, uma empreitada audaciosa que coloca nas mãos (e no corpo) de um único ator a tarefa hercúlea de reviver toda a tragédia shakespeariana.

A premissa é o alicerce genial da obra: em um teatro fechado ou interditado por razões políticas, um ator solitário – interpretado por Evandro Santiago – se recusa a silenciar. Em meio a um palco que evoca o abandono, ele reconstrói a narrativa dos amantes de famílias rivais utilizando destroços de uma produção interrompida: cenários desmontados, adereços esquecidos, fragmentos de um espetáculo que não pôde ser. Esta moldura metateatral é o cerne de uma montagem que debate a paixão do artista por seu fazer.

A encenação de Ana Rosa Tezza aposta em uma linguagem sofisticada que mescla a força do texto shakespeariano, na consagrada tradução de Bárbara Heliodora, com a delicadeza e poesia do teatro de objetos. A escolha por um ator solo para dar vida à multiplicidade de personagens exige de Santiago uma performance que é um verdadeiro tour de force de talento técnico e emoção crua. É emocionante observar como sua atuação empreende uma construção corporal e anímica repleta de nuances, transitando da paixão juvenil de Romeu à determinação trágica de Julieta, da fúria explosiva de Teobaldo ao humor ágil de Mercúcio, com uma honestidade que arrebata. A direção minuciosa garante que cada transição seja clara, orgânica e carregada de significado, tornando a multiplicidade a própria essência dramática.

O espaço cênico, concebido por Daniel Pinha, e a iluminação, assinada por Beto Bruel e Rodrigo Ziolkowski, são fundamentais para a criação de uma atmosfera de intimidade e memória. O palco é um personagem em si, um arquivo de um passado artístico interrompido. A iluminação é o farol que guia a narrativa, isolando momentos de êxtase ou desespero, e esculpindo a solidão do protagonista no espaço.

A dimensão sensorial do espetáculo é ampliada pela trilha sonora original, composta e executada ao vivo pelos músicos Arthur Jaime e Breno Monte Serrat. A música é interlocutora direta e ativa do ator em cena, criando uma atmosfera envolvente que pulsa em sincronia. A presença física dos músicos no palco, mesmo que em um plano de fundo, reforça a ideia de um ato coletivo de resistência.

Os elementos visuais, como o figurino de Eduardo Giacomini e as máscaras e bonecos de Eduardo Santos são extensões do corpo do ator e fundamentais para a dramaturgia. O figurino, muitas vezes simples e funcional, contrasta com a riqueza simbólica dos objetos que ele manipula. As máscaras e bonecos conferem identidade e materialidade aos outros personagens, transformando-se em parceiros de cena inanimados que ganham vida pelas mãos de Santiago.

“Sozinho com Romeu e Julieta” é um manifesto cênico sobre a essência do teatro: a capacidade humana de fabular, de construir mundos complexos a partir do quase nada e de manter a esperança acesa com os recursos mais primordiais – corpo, voz, imaginação e convicção. A Trupe Ave Lola, com esta obra, reafirma sua vocação para uma pesquisa cênica poética e inteligente, oferecendo ao público uma experiência que, ao revisitar um clássico do passado, dialoga de forma urgente e necessária com o presente.

Três perguntas para…

…Evandro Santiago

O espetáculo é um tour de force para um ator. Qual foi o maior desafio pessoal e técnico em conduzir sozinho uma narrativa com tantos personagens? Como você e Ana Rosa estruturaram o processo de ensaio para dar vida a cada um deles de forma distinta e orgânica?

Pela primeira vez sozinho no palco, o grande desafio foi confiar nas minhas capacidades para contar uma história tão conhecida. Mas nada se constrói sozinho: mesmo atuando solo, fui apoiado por uma equipe criativa incrível, essencial para este mergulho.

Shakespeare cria personagens de uma riqueza impressionante. Mergulhar num só já é profundo; processar mais de dez foi intenso. Paralelamente, surgiu outro desafio: construir um personagem que não está no texto — o próprio ator que narra. A solução veio pela metalinguagem: um ator que se desdobra em múltiplas personas, emprestando corpo e voz a cada figura.

Foi um trabalho de escavação, quase arqueológico, de possibilidades que surgiam, sumiam e se transformavam. Ana Rosa e eu queríamos um teatro que dialogasse com o corpo do ator e o objeto. Fragmentos de bonecos e manequins guiaram-nos. Descobrimos que uma figura podia habitar todo o meu corpo ou apenas uma mão, um olhar. E que o público era a peça que faltava para completar o jogo.

Cada personagem ganhou organicidade através do estudo da voz, da forma e do tamanho que cabia em cada um. Tudo é corpo — até a voz.

O personagem que você interpreta é um ator que resiste em um teatro fechado. Como você, Evandro Santiago, se relaciona com a luta e a resiliência desse homem? O que essa história diz sobre o momento atual das artes no país?

A arte é um espelho do ser humano. Para ser artista, é preciso cultivar a humanidade — e é disso que a vida precisa, e também padece.

É essencial questionar: nossas escolhas, paixões, nosso lugar no mundo. Olivo, o personagem que interpreto, assim como Romeu e Julieta, escolhe a paixão antes da sobrevivência. Prefere morrer a viver sem aquilo que ama. Ser artista é viver no limite entre o sentir e o suportar. E, em um país onde se fecham teatros, se silenciam vozes e se persegue quem pensa livremente, fazer arte é resistência. Pensar é resistência. Criar é um ato político.

A arte é urgente. Arde na pele do tempo. Repete dores com nomes e rostos diferentes, mas com a mesma essência. Cabe a nós resistir. Criar. Pensar. Se faltarem teatros, palcos, teto ou parede, ainda haverá chão. Haverá céu. O poder do artista é sutil, invisível, misterioso — e contra isso não há quem vença.

Após um projeto tão desgastante e, ao mesmo tempo, gratificante, que tipo de trabalho ou desafio você busca para o futuro? Essa experiência despertou o interesse por outros monólogos ou por uma dramaturgia mais física?

O teatro é minha terra mais fértil. É onde tudo pulsa com mais verdade. É para o palco que quero criar.

A vida já me deu chacoalhões que me fizeram duvidar se merecia ser ator. A síndrome do impostor é real. Mas hoje não vejo outra possibilidade para mim, e nem quero. O que me move são os desafios. Desejo sair do lugar, dar espaço a outras vozes, corpos e histórias. É sobre descansar de mim e me emprestar a outras existências. Brincar. Criar. Isso traz mais graça, cor e sentido à vida.

Novos monólogos? Nem imaginava tão cedo. A vida surpreende. O que quero é trabalhar, criar, estar em movimento. Que surjam oportunidades. Estou pronto. “Abram os caminhos. Abram-se os caminhos”

Teatro Ave Lola – rua Marechal Deodoro, 1.227, Centro – Curitiba (PR). De 18 a 28/9. Qui. e sex., 20h. Sáb., 15h e dom., 18h. Duração: 95 minutos. A partir de R$ 40 (meia-entrada) em www.diskingressos.com.br



Fonte ==> Folha SP

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