Um “mergulho” no universo de Niemeyer através da única casa projetada pelo arquiteto em São Paulo

Um "mergulho" no universo de Niemeyer através da única casa projetada pelo arquiteto em São Paulo

“Essa é uma casa simples, diferente e acolhedora.”

Assim começa a “dedicatória” de Oscar Niemeyer para Milton José Mitidieri. O arquiteto e o engenheiro haviam se conhecido durante a construção de Brasília, quando, no início da década de 1960, o modernista presenteou o amigo com o projeto de uma casa para sua família — o casal Milton e Edith e seus quatro filhos.

Ao longo de quase 80 anos de carreira, Niemeyer transformou a paisagem do Brasil (e do mundo) com suas formas orgânicas e sinuosas. Mas ele era um arquiteto de obras públicas. De seus cerca de 600 projetos, os residenciais são raros. E, entre os poucos, o “presente” para os Mitidieri é o único na cidade de São Paulo.

Com 670 metros quadrados de área construída, em um terreno de 1,8 mil metros quadrados, o número 607 da rua Sílvia Celeste de Castro, no elegante bairro de Alto de Pinheiros, pertence até hoje à família do engenheiro.

Depois da morte do marido, em 2011, Edith ainda morou lá por mais um ano. Mas, com os filhos já adultos, o espaço acabou grande demais para ela. Mais recentemente, a casa começou a ser alugada para eventos corporativos e produções audiovisuais — a R$ 30 mil, R$ 35 mil a diária, que ajudam a pagar os custos de manutenção e restauração do lugar.

Os herdeiros são extremamente criteriosos na escolha dos clientes. ”Se tiver muita gente, você não entende a casa. A experiência muda”, diz Milton, de 63 anos, o caçula dos irmãos Mitidieri, em conversa com o NeoFeed.

Apesar da capacidade para cerca de 150 convidados, eles tentam limitar a ocupação em torno de 60 pessoas. Festa de 15 anos, nem pensar, adverte Milton.

A propriedade também está à venda por R$ 25 milhões, mas ela só será passada adiante se o comprador estiver disposto a preservá-la — se ele souber o que significa ser dono de uma obra, quase uma escultura, de Niemeyer. Não é, portanto, um negócio fácil de ser fechado.

“Não é uma residência tradicional. É uma arquitetura muito específica para um perfil de cliente muito específico”, explica Milton. “Até hoje não encontramos ninguém.”

Certa vez, uma pessoa se mostrou interessada. Durante a visita, quis saber se um dos imóveis vizinhos estava à venda também. A ideia dela era derrubar tudo, juntar os terrenos e construir um condomínio. A conversa terminou ali… demolição? Nem pensar.

“O que me atrai é a curva livre e sensual”

Como definiu Niemeyer na dedicatória para Mitidieri, é, sem dúvida, uma casa “diferente”. Viver no endereço de Alto de Pinheiros é habitar um legado. Todas as características dos traços de seu autor estão lá .

“Não é o ângulo reto que me atrai, nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem”, costumava dizer o arquiteto. “O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas de meu país, no curso sinuoso de seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida.”

A casa está repleta de sinuosidade. A laje da cobertura; a frente toda envidraçada; a parede que, sem ir até o teto, isola o escritório do living; a sala de jantar em planta circular, revestida de cerejeira, e o belíssimo corredor dos quartos, entre outras tantas curvas.

Passear pela casa com atenção à riqueza de cada detalhe é uma experiência fascinante — um mergulho no universo de Niemeyer.

A plasticidade do concreto aparente vibra e as paredes de vidro conectam o interior com os jardins à la Burle Marx, que abraçam a construção e foram cuidadosamente cuidados por Edith ao longo de quase 40 anos. Uma rampa de madeira, semelhante à do Palácio do Planalto, faz a conexão entre o social e o íntimo.

E é no topo dela que se tem um dos ângulos mais bonitos e interessantes do projeto. Duas curvas, uma ao fundo e outra na lateral, impedem que alguém que esteja no living consiga ver a área mais reservada da casa (veja o vídeo). Nessas pequenas descobertas, revela-se a genialidade de Niemeyer.

“Os quartos ficam apenas um metro acima do nível das salas e isso é o suficiente para mantê-los indevassáveis”, escreveu o arquiteto na dedicatória a Mitidieri.

“O importante são os espaços vazios”

A cerca de dois metros acima do plano da rua, a casa até parece térrea, mas está distribuída em três desníveis. “A idéia básica foi evitar uma residência de 2 andares”, contou Niemeyer.

A suíte, os quatro quartos e dois banheiros ficam no mais alto. Rebaixada cerca de um metro em relação ao térreo e quase no plano da cozinha, fica a sala de jantar.

No mais baixo, além da cozinha, estão as salas de almoço, de costura e de televisão, bem como a lavanderia, as dependências de serviço e a garagem.

“O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas de meu país, no curso sinuoso de seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida”, dizia o arquiteto (Foto: Reporudção)

Um rampa faz a coneção entre as áreas social e íntima (Foto: Reprodução)

A sala de jantar fica um metro abaixo do térreo e um pouco acima do nível mais baixo da casa (Foto: Reprodução)

Os vidros fazem a conexão do interior com os jardins (Foto: Reprodução Facebook)

Uma parede curva, sem tocar o teto, isola o escritório da sala de estar (Foto: Reprodução)

Por causa da sinuosidade das paredes, da área dos quartos não dá para ver o living (Foto: Reprodução)

No projeto do living, Neymeyer “decorou” a casa (Foto: Instagram @casaniemeyer)

Na “dedicatória” para o amigo engenheiro, Niemeyer explicou as principais concepções do projeto (Foto: Instagram @casaniemeyer)

Milton Mitidieri começou a construir a casa em 1970 (Foto: Instagram @casaniemeyer)

Os jardin circudam toda a casa (Foto: Instagram @casaniemeyer)

Para “entender” o presente do amigo, o engenheiro construiu uma maquete em papel antes de dar início às obras (Foto: instagram @casaniemeyer)

Edith Mitidieri quis fazer algumas alterações na planta original e Niemeyer a autorizou por escrito (Foto: Instgram @casaniemeyer)

Quem entra na casa pode estranhar a sua amplitude e pensar na quantidade enorme de móveis necessária para ocupar aquilo tudo.

Os que conhecem um pouco da filosofia de Niemeyer, porém, sabem como o arquiteto valorizava os espaços vazios — essenciais, como dizia, para a beleza, a liberdade de movimentos e a interação entre a obra e as pessoas. “O vazio é um grande trunfo da arquitetura”, defendia.

Morar em casa tão ousada pode ser desafiador. Edith achou, por exemplo, que, pelo projeto original, ela teria de dar uma volta muito grande para ir do quarto à cozinha.

Pensou em construir uma escada que encurtasse o caminho. Mas nenhuma modificação foi feita sem a concordância de Niemeyer. Milton e os irmãos guardam até hoje o “termo de consentimento” do arquiteto.

A casa só começou a sair do papel em 1970 — quando Mitidieri ganhou o presente, a família nem sequer tinha o terreno para a sua construção.

Antes de a obra começar, para entender o projeto, ele fez uma maquete da construção. “Meu pai era daqueles engenheiros bem cartesianos e o projeto era muito arrojado não só para ele como para a época”, lembra Milton.

Na época, ele tinha 11 anos e lembra da euforia da família (e dos vizinhos) à medida em que a residência era erguida. Depois de pronta, então… a rampa e a vastidão das salas se transformaram em pista de skate e bicicleta para ele, os irmãos e os amigos.

“Era um parque de diversões”, recorda. Niemeyer, porém, não teve a chance de conhecer sua única casa na cidade de São Paulo — nem as alegrias (e desafios) colocadas por ela.



Fonte ==> NEOFEED

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