Montagem da Osesp celebra os 100 anos da estreia da ópera expressionista e reafirma a Sala São Paulo como espaço privilegiado para grandes obras do século XX
A ópera “Wozzeck”, de Alban Berg, na Sala São Paulo, foi um dos acontecimentos mais relevantes da temporada sinfônica de 2025, tanto pelo peso histórico da obra quanto pela ambição do projeto artístico da Osesp. Em ano em que se celebram os cem anos da estreia mundial, a partitura expressionista, brutal e lírica de Berg encontra, no espaço acústico da antiga estação Júlio Prestes, um ambiente ideal para que sua radicalidade dramatúrgica se revele em toda a extensão.
Um século de “Wozzeck”
Composta entre 1914 e 1922 e estreada em 14 de dezembro de 1925 na Ópera Estatal de Berlim, “Wozzeck” consolidou Alban Berg como um dos grandes nomes da Segunda Escola de Viena e como um renovador decisivo do teatro musical do século XX. A obra, baseada na peça inacabada “Woyzeck”, de Georg Büchner, condensa em quinze cenas, organizadas em três atos, um retrato devastador de opressão social, degradação psicológica e violência institucional, que dialoga com as fraturas de uma Europa pós‑Primeira Guerra.
Em São Paulo, a Osesp insere a montagem no seu projeto bienal de óperas em forma de concerto, iniciado em 2023 com “A danação de Fausto”, de Hector Berlioz, assumindo “Wozzeck” como segundo título de uma linha curatorial que privilegia obras de impacto histórico e arquiteturas sonoras complexas. O gesto é coerente com uma trajetória institucional que, desde a inauguração da Sala São Paulo em 1999, vem apostando na ampliação do repertório e na formação de público para a grande tradição sinfônica e coral.
Sala São Paulo como espaço dramático
Instalada na antiga Estação Júlio Prestes, a Sala São Paulo é reconhecida internacionalmente pela excelência acústica, resultado de um projeto arquitetônico e acústico que transformou o espaço ferroviário em uma das principais salas de concerto do continente. O teto móvel, os painéis ajustáveis e a volumetria da sala permitem um controle fino da reverberação, oferecendo clareza às texturas orquestrais densas e ao mesmo tempo sustentando as linhas vocais em um repertório de grande exigência técnica como o de Berg. Particularmente neste espetáculo, a extremidade do palco revestido de madeira da sala foi coberta por uma espécie de painel espelhado flexível, com leds, tornando a experiência ainda mais imersiva. Isso sem olvidar das projeções que forjavam os cenários originais, aplicando uma interpretação contemporânea da peça.
Essa plasticidade acústica é particularmente determinante em “Wozzeck”, cuja escrita alterna blocos massivos de orquestra, filigranas camerísticas e passagens de parlando quase sussurrado, exigindo que o texto cantado não se perca na massa sonora. A configuração da Sala favorece ainda a dimensão quase cinematográfica da partitura, em que cortes abruptos, interlúdios orquestrais e mudanças súbitas de atmosfera dependem da percepção precisa de timbres, dinâmicas e silêncios.
O projeto da Osesp
A escolha de “Wozzeck” para dezembro de 2025 dá continuidade a um esforço recente da Osesp de integrar o repertório operístico ao seu núcleo de atuação, em diálogo com o Coro da Osesp e com solistas convidados. A orquestra, que ao longo das últimas décadas consolidou um padrão de excelência sinfônica e camerística, volta‑se aqui para uma partitura que testa a flexibilidade rítmica, a precisão da escuta interna e a capacidade de acompanhar as inflexões da palavra cantada em tempo real.
O formato de “concerto cênico” adotado para a obra busca um equilíbrio entre a fidelidade musical à partitura e uma visualidade que sublinhe a dimensão teatral, sem recorrer a um aparato cenográfico completo. Figurinos, maquiagem, iluminação e gestualidade desenhados para a Sala São Paulo convertem o palco sinfônico em espaço dramático, aproveitando a proximidade do público com os músicos e solistas para intensificar o efeito expressionista da narrativa.
Thierry Fischer e André Heller‑Lopes
A direção musical e a regência são de Thierry Fischer, regente titular da Osesp, que vem imprimindo à orquestra um perfil de curiosidade exploratória, com ênfase no repertório do século XX e em projetos que aproximam música e teatro. Em entrevistas recentes, Fischer destaca como o trabalho com ópera em formato de concerto força a orquestra a um contato ainda mais íntimo com o texto, a respiração dos cantores e a construção de personagem, o que amplia a maleabilidade coletiva do grupo.
Na direção cênica, André Heller‑Lopes, nome central da encenação de ópera no Brasil, assume a tarefa de traduzir o universo fragmentado de Büchner e Berg em uma linguagem que se adeque às condições físicas e técnicas de um palco sinfônico. A opção por uma encenação concentrada em movimentos, luz e composição de imagens, mais do que em mudanças de cenário, acentua o caráter psicológico do drama e os contrastes entre o ambiente opressivo do quartel, a precariedade da casa de Marie e o delírio final às margens do lago.
Elenco internacional e coros
No papel‑título está o barítono escocês Robin Adams, intérprete com sólida experiência no repertório do século XX, cuja presença promete um Wozzeck de grande densidade vocal e dramática, à altura das exigências extremas colocadas por Berg à tessitura e à resistência física do cantor. Ao seu lado, a soprano alemã Astrid Kessler assume o papel de Marie, figura que condensa desejo, culpa, maternidade e desamparo, desdobrando em sua linha vocal desde a aspereza do cotidiano miserável até lampejos de lirismo quase mahleriano.
O elenco se completa com outros nove solistas, compondo a galeria de personagens que orbitam o protagonista: o Capitão (Thomas Ebenstein), o Doutor (Markus Hollop), o Tambor‑Mór (Robert Watson), os Jovens Artesãos (Savio Sperandio e Michel de Souza), entre outros, criando um painel de humilhações, abusos e violências simbólicas que compõem o ambiente opressor em que Wozzeck se desintegra. O Coro da Osesp e o Coro Infantil da Osesp reforçam a dimensão coletiva da tragédia, seja nas cenas de taberna, seja nos momentos finais em que as crianças, indiferentes, brincam ao redor da morte, sublinhando a frieza estrutural da sociedade retratada.
Estrutura musical e dramaturgia
Berg construiu “Wozzeck” a partir de uma sofisticada arquitetura musical que combina princípios da atonalidade pós‑wagneriana com procedimentos derivados da tradição clássica, como suítes, passacaglias e formas de invenção, aplicados de modo quase paródico ao material dramático. Cada cena desenvolve uma forma musical específica, desde uma sequência de variações até uma fuga, enquanto os interlúdios orquestrais funcionam como comentários emocionais condensados, verdadeiros monólogos da própria orquestra sobre o que se viu em cena.
Essa organização rigorosa, longe de arrefecer a intensidade expressionista, potencializa o impacto emocional, pois a lógica interna da partitura sustenta as explosões de violência, os murmúrios paranoicos e os delírios de Wozzeck, oferecendo ao intérprete um mapa preciso das tensões dramáticas. A orquestra de Berg, com sua paleta expandida de timbres e suas texturas de fricção, coloca em relevo tanto a precariedade social do protagonista quanto as pressões externas de poder, ciência e militarismo que o esmagam.
Relevância histórica e política
Desde a estreia em Berlim, em 1925, “Wozzeck” foi percebida como uma obra de choque, não apenas pela linguagem musical avançada, mas pela crueza com que expõe a miséria material e espiritual das camadas subalternas sob o peso de estruturas hierárquicas violentas. Ao trazer essa obra para a Sala São Paulo em formato de grande evento sinfônico, a Osesp atualiza, em contexto brasileiro, a discussão sobre loucura, desigualdade, exploração do corpo e manipulação científica do indivíduo, temas que permanecem agudamente contemporâneos.
Críticos têm sublinhado que há obras que não envelhecem porque nunca foram exatamente contemporâneas, mas sempre urgentes, e “Wozzeck” se encontra nesse território de permanente incômodo, recusando a oferta de consolo estético ao público. A montagem paulista, ao escolher não suavizar a aspereza da partitura nem a dureza da narrativa, insiste na ideia de que a música de concerto pode e deve confrontar o espectador com verdades desconfortáveis sobre a violência institucional e sobre o abandono dos vulneráveis.
Programação ampliada e difusão
A temporada em torno de Berg incluiu ainda atividades paralelas, como o encontro “Berg em diálogo: Thierry Fischer e Jorge Coli”, promovido pela Estação Motiva Cultural, que discutiu o lugar do compositor na história da música e o impacto de “Wozzeck” no repertório do século XX. Essas ações de mediação cultural, associadas a recitais com obras de Berg, Schoenberg, Villa‑Lobos e Marlos Nobre, expandem a experiência do público para além da apresentação principal, contextualizando historicamente as rupturas estéticas em jogo.
A apresentação de sábado (06/12), às 16h30, integra ainda a série de “Concertos Digitais” da Osesp, com transmissão ao vivo pelo canal oficial da orquestra no YouTube, o que amplia o alcance da obra para além dos limites físicos da Sala São Paulo e reforça o papel da instituição como difusora de repertórios complexos. Em tempos de disputa acirrada pela atenção do público, a aposta em uma ópera atonal de alta densidade como “Wozzeck” em múltiplos formatos, sala, mediação, streaming, representa um gesto institucional de rara coragem artística. O sucesso de bilheteria e vizualizações online, nesse sentido, comprovam que há público para espetáculos dessa magnitude, incorajando nossas empreitadas da mesma monta para a temporada 2026.
Ao apostar em Wozzeck, a Osesp reafirma uma vocação institucional rara no cenário brasileiro: a de tratar a música erudita como espaço de reflexão estética, histórica e política. A montagem na Sala São Paulo não apenas celebra um marco do repertório operístico do século XX, mas reforça a ideia de que grandes obras permanecem atuais justamente porque recusam o conforto e exigem escuta ativa do seu tempo e na contemporaneidade.

