Paulista de Hirsch é mosaico da vida urbana em SP – 19/06/2025 – Mise-en-scène

Paulista de Hirsch é mosaico da vida urbana em SP - 19/06/2025 - Mise-en-scène

Felipe Hirsch entrega com seu espetáculo sobre a avenida Paulista uma experiência que respira com ela. Seu novo trabalho, em cartaz no Teatro Sesi-SP, longe de ser um retrato estático, está mais para um corpo em movimento —um fluxo de histórias, sons e imagens que capturam a essência inquieta daquela que é um símbolo vivo da metrópole.

Há 20 anos, o mesmo palco recebeu “Avenida Dropsie”, peça que mergulhava nas entranhas do bairro do Bronx em Nova Iorque, criada pelo artista norte-americano Will Eisner. Agora, Hirsch faz uma viagem de volta, mas não para repetir o passado. Ele desloca o olhar para o coração de São Paulo, transformando a Paulista em um espelho do mundo —como bem disse Caetano Veloso, “São Paulo é como o mundo todo”. E é essa universalidade que a montagem persegue, sem didatismos ou narrativas óbvias.

A peça se estrutura como um passeio entre a “Consolação” e o “Paraíso”, dois nomes que são, além de lugares, estados de espírito. A avenida, em sua agitação infinita, é feita de milhões de passos apressados, mas Hirsch nos convida a parar. Parar para ver, para escutar, para sentir o que se esconde por trás do vidro dos arranha-céus e do asfalto. Não se trata de uma crônica urbana, e sim de uma carta de amor bem-humorada e melancólica, que celebra a vida na cidade sem ignorar suas feridas.

A música é uma personagem central. Quinze vozes da cena paulista —de Arnaldo Antunes a Tulipa Ruiz, de Juçara Marçal a Negro Leo— compõem canções inéditas que ambientam e habitam o espetáculo. São canções que poderiam ser ouvidas em algum bar escondido, em um carro em movimento, ou mesmo na mente de um transeunte solitário. Elas dão ritmo ao mosaico de cenas passageiras, fragmentos que se encaixam como as peças de um quebra-cabeça urbano.

Não há linearidade aqui. A dramaturgia é feita de lampejos, de encontros fugazes, de memórias que surgem e desaparecem como prédios demolidos. A Paulista de Hirsch não é apenas a dos milionários e dos grandes eventos; é também a dos sonhos perdidos, das ausências, das solidões que se cruzam sem se tocar. O humor surge como resistência, como forma de lidar com o absurdo cotidiano —porque rir, às vezes, é a única maneira de não chorar diante do caos.

O Teatro Sesi-SP, que celebra seis décadas, é parte dessa história, um lugar que guarda em suas paredes as marcas de outras montagens, outras épocas. Quando “Avenida Dropsie” passou por lá, em 2004, São Paulo era outra. Agora, a cidade se reinventa mais uma vez, e Hirsch captura esse movimento sem tentar congelá-lo.

A gratuidade das apresentações é um gesto significativo: é um convite para que a própria cidade entre no teatro, para que o público —tão diverso quanto a Paulista— possa se reconhecer nesse espelho. Porque, no fim das contas, a montagem não fala sobre um lugar, mas sobre as pessoas que o vivem.

E talvez o maior ensinamento de “Avenida Paulista: da Consolação ao Paraíso” seja justamente esse: o paraíso não está no final da avenida, mas nos pequenos instantes em que conseguimos parar, olhar para os lados e perceber que, no meio de tanto concreto, ainda há espaço para poesia.

Três perguntas para… Felipe Hirsch

A Paulista é um território em constante transformação. A encenação propõe uma reflexão sobre apagamento e preservação da memória afetiva da cidade?

A encenação se concentra mais em observar os detalhes do cotidiano da Paulista —tanto de dia quanto de noite— do que em propor uma reflexão direta sobre a memória do lugar. O foco está no que muitas vezes passa despercebido devido à nossa pressa e ansiedade, abordando questões de apagamento, preservação e a dinâmica do dia a dia. A reflexão sobre o espaço surge justamente quando esses pequenos elementos, que sempre estiveram presentes, são finalmente percebidos sob uma nova perspectiva.

Assim, a transformação constante da Paulista aparece como pano de fundo, mas a peça prioriza um olhar atento ao que está ali, invisível no ritmo acelerado da cidade.


A avenida é palco de contradições: centro financeiro, espaço de protestos, reduto cultural e símbolo de desigualdades. Como a peça captura essa complexidade sem cair no documental?

É verdade, acho que seguimos um caminho diferente. Não quisemos documentar nem recontar a história da Paulista —até porque eu nem vejo mais ela apenas como um centro financeiro, nem como o símbolo mais evidente da desigualdade em São Paulo (como seria, por exemplo, a clássica imagem do contraste entre o Morumbi e as periferias). A cidade —e o país— já carregam esse peso.

Mas a Paulista, especialmente aos domingos, tem algo singular: uma demonstração democrática rara, ainda que imperfeita, com seus momentos de repressão e convivência. Essa complexidade está justamente no olhar para os detalhes, para as pessoas invisíveis —como diria Will Eisner. E é isso, no fundo, que a peça explora: o que se esconde no cotidiano, no que passa despercebido no fluxo da cidade.

Como sua experiência pessoal com a avenida Paulista moldou o olhar poético do espetáculo?

São 25 anos de experiência —e você até deve estar ouvindo a ambulância passando aqui do meu lado— mergulhado nesse olhar atento às pequenas cenas. Esses diálogos que, de tão cotidianos, parecem insignificantes, mas na verdade são épicos, importantes, quase musicais.

Foi um trabalho que, claro, se intensificou nos últimos meses, mas que vem sendo construído há décadas.



Fonte ==> Folha SP

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