Artistas brasileiros dão vida a um Camões do século 21 – 23/01/2025 – Rede Social

Artistas brasileiros dão vida a um Camões do século 21 - 23/01/2025 - Rede Social

[RESUMO] Nos 500 anos do nascimento de Luís de Camões, uma ópera, espetáculos teatrais e competições de slam ampliam o olhar sobre a obra e o legado camoniano para além do cânone acadêmico. Em “O Céu da Língua”, comédia de Gregorio Duvivier; “O olho Perdido de Camões”, de Nelson Monforte; e na ópera “Canto(s) da Condição Humana”, do maestro Jônatas Manzolli, Camões transcende seu tempo e oferece à lusofonia expressões artísticas que conectam passado e presente, ao refletir sobre a herança de “Os Lusíadas”.

A celebração dos 500 anos de nascimento de Luís de Camões em 2024 fez o poeta maior da língua portuguesa renascer em obras multimídias que atualizam o seu legado em um rico diálogo entre Brasil, Portugal e África.

A efeméride inspirou artistas dos dois lados do Atlântico a mergulhar no universo épico e lírico do poeta do Renascimento em peças teatrais, exposição fotográfica, ópera e até em competições de slam, os desafios de poesia falada.

São releituras contemporâneas da obra camoniana, como “O Céu da Língua”, comédia poética escrita e estrelada pelo brasileiro Gregorio Duvivier.

No espetáculo cocriado e dirigido por Luciana Paes, que estreou em novembro do ano passado em Lisboa e chega aos palcos brasileiros em 6 em fevereiro no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro, Camões usa gola rufo e tênis All Star, tem sotaque carioca e a verve de um comediante obcecado pela palavra.

“O tema surgiu da vontade de falar sobre a língua. A peça é uma ode à palavra. E Camões é aquele que primeiro levou as palavras à suprema perfeição da língua”, disse Duvivier à Folha, logo após fechar a turnê de 19 apresentações em Portugal, sempre com casa cheia em Lisboa e no Porto.

O espetáculo mescla stand-up, rapsódia, música e projeções para propor reflexões humorísticas sobre o impacto da fala, da linguagem e da cultura no idioma comum de brasileiros e portugueses, em uma comunidade lusófona que inclui Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e Goa.

“É uma homenagem, mas sobretudo uma tentativa de aproximar os falantes do português de Camões e levar a poesia dele ao rés do chão”, explica o ator. Duvivier usa o humor para tirar “Os Lusíadas” da “torre de marfim” como clássico universal.

Ele brinca com os diferentes registros e sotaques do português, conectando o clássico ao popular. Logo na abertura, declama os versos iniciais do Canto 1 de “Os Lusíadas”: “As armas e os barões assinalados/ Que da Ocidental praia Lusitana/ Por mares nunca de antes navegados/ Passaram ainda além da Taprobana”.

É o gancho para demonstrar como a métrica camoniana e seus versos decassílabos tão bem cabem na cadência melodiosa do falar brasileiro, dado que o português contemporâneo europeu tende a omitir as vogais átonas.

“O mesmo verso falado no português de Portugal é um heptacílabo. Dificilmente, vai dar dez sílabas, porque na língua continental não se falam as vogais não tônicas”, constata o ator.

O texto saboroso de Duvivier faz rir e pensar sobre outro fenômeno fonético, o rotacismo, no qual o “L” é transformado em “R” na obra de Camões. Duvivier graceja com a grafia usada pelo poeta para flecha, planta, flauta.

“Camões falava frecha, pranta, frauta, que é um jeito bem brasileiro. No Rio, pelo menos, fala-se muito assim”, explica o comediante, ao escancarar “preconceitos linguísticos” sobre uma pronúncia vista como inculta.

São características que fazem de Camões um poeta pop, na visão do brasileiro. “Colocá-lo neste seu lugar de origem é uma das missões de ‘O Céu da Língua’”, diz Duvivier. “Camões fazia uma poesia muito popular na sua época. Os versos de ‘Os Lusíadas’ foram escritos para serem declamados, tocar as pessoas. E não apenas estudados em universidade.”

“O Céu da Língua” moderniza Camões e o traduz para o contexto de uma lusofonia global e contemporânea.

É o mesmo propósito do dramaturgo e ator português Nelson Monforte em “O Olho Perdido de Camões”. O espetáculo foi encenado pela primeira vez na virada de 9 para 10 de junho, data da morte de Camões, com uma chamada divertida: “De quem foi a ideia de comemorar meu nascimento no dia da minha morte?”.

Foi de José Manuel Diogo, presidente da Associação Portugal Brasil 200 anos, que faz a curadoria da Casa da Língua Portuguesa, em Coimbra, onde a peça estreou como parte das comemorações dos 500 anos do nascimento de Camões em 2024.

Monforte transforma o “olho perdido” de Camões em poderosa metáfora. A perda literal da vista pelo poeta, que ficou caolho quando lutava na África como soldado da Coroa Portuguesa, representa também uma visão parcial e eurocêntrica da história.

“Eu brinco no texto que ele perdeu um olho e passou a ver a vida pela esquerda. Justamente Camões que foi usado tanto pela direita quanto pela esquerda e pelo centro”, diz Monforte.

Ele coloca o ditador António Salazar, primeiro-ministro no Estado Novo (1953-1974), como narrador do espetáculo, destacando ainda a celebração em 2024 dos 50 anos da Revolução dos Cravos, que pôs fim ao salazarismo. “Estamos outra vez a discutir a fragilidade da democracia”, lembra o dramaturgo, sobre a contemporaneidade da obra camoniana.

Com dois Camões em cena, interpretados pelo brasileiro Luiz Guarnieri e o português Gonçalo André, a peça pode ser vista para além da perspectiva colonial, mergulhando em camadas mais profundas da identidade portuguesa, resgatando vozes silenciadas, como a dos imigrantes.

A obra voltará a ser encenada neste ano em Portugal e deve seguir para a África.

Monforte também retira Camões do pedestal literário e o apresenta multifacetado, mítico e falível. “Com um ibérico e outro meridional estamos falando da diversidade da nossa língua comum, de colonialismo, de identidade e de memória”, resume o autor.

O mundo de Camões era globalizado, antes mesmo que tal conceito existisse, como ressalta Maria Bochicchio, doutora em literatura contemporânea e uma das coordenadoras do Centro Interuniversitário de Estudo Camonianos da Universidade de Coimbra.

“É interessante notar que Camões era um homem globalizado. Viveu na Europa, na África, na Ásia, percorrendo o mundo conhecido da época e o vivenciando em sua completude.”

A pesquisadora ressalta, no entanto, que Camões foi estrangeiro na própria terra. “Viveu a condição de acarinhado da corte, de exilado e de indigência.” O reconhecimento como autor do grande romance épico que constrói a identidade portuguesa só veio após sua morte em 1580.

Cinco séculos depois de seu nascimento, o poeta ganha ainda as feições de dez figuras anônimas na exposição fotográfica “O Rosto de Camões”, do fotógrafo e artista visual português João Francisco Vilhena.

As imagens de cinco homens e cinco mulheres travestidos como o autor de “Os Lusíadas” em releituras do seu mais conhecido retrato foram exibidas em terras brasileiras e lusitanas, representando a diversidade dos dez territórios falantes da língua portuguesa.

“É um exercício artístico que não apenas celebra a diversidade cultural dos países lusófonos, mas é também uma reparação histórica, ao representar o poeta global por meio de múltiplas identidades e gêneros”, explica Diogo, sobre a exposição que a Associação Portugal Brasil 200 Anos levou aos dois países.

A obra camoniana passa assim a ser celebrada não apenas como patrimônio literário de Portugal, mas como ponto de encontro entre diversas culturas que compartilham o português como língua oficial.

É o que se vê na confluência de poetas africanos, brasileiros e portugueses no Slam Camões, campeonato de poesia falada em oito eventos realizado de maio a novembro de 2024 nos salões da Casa da Cidadania da Língua.

A proposta foi a de fazer o poeta renascentista dialogar com poetas contemporâneos, numa curadoria da brasileira Maria Giulia Pinheiro. Radicada em Portugal desde 2019, ela se deparou com uma cena de slam muito diferente da de São Paulo, onde competia em eventos na periferia.

“Em Portugal, havia uma cena mais conservadora, elitizada e até racista”, critica. Incomodada, a poeta e dramaturga decidiu criar o Todo Mundo Slam, que já nasceu inclusivo. “São campeonatos de poesia falada marcadamente decolonial com a participação de poetas de todos os países que falam português.”

O penúltimo campeonato, em outubro do ano passado, contou com 4 poetas angolanos, 5 brasileiros e 4 portugueses.

“A minha teoria é que se Camões vivesse hoje ele seria um poeta de slam e competiria nesses campeonatos de poesia falada”, diz Maria Giulia. “Ele era marginal, um poeta do seu tempo que criou uma linguagem.”

Além do fato de “Os Lusíadas” funcionar em voz alta. “Foi importante trazer essa oralidade de Camões”, diz a curadora. Em cada Slam Camões havia a leitura de cantos do poema épico camoniano, com seus 8.816 versos e 1.102 estrofes que carregam ritmo e musicalidade. Uma maratona de nove horas de leituras.

O decassílabo, métrica predominante em seus versos, é marcado por uma cadência que favorece a declamação e a memorização. “No tempo de Camões, a poesia era lida ou cantada em voz alta, o que se aproxima das performances modernas do slam”, compara Maria Giulia.

A curadora enxerga a palavra e a língua portuguesa como elementos de conexão e cidadania. Se Camões utilizou a epopeia para narrar os feitos dos navegadores portugueses, o slam pode ser entendido como uma nova forma de épico, ao narrar histórias de resistência de imigrantes africanos e brasileiros em versos sobre a luta pela sobrevivência em periferias e favelas.

“Tanto Camões quanto os poetas de slam utilizam a linguagem poética para celebrar e questionar suas realidades”, avalia Maria Giulia.

As celebrações pelo nascimento de Camões chegam à seara erudita com uma ópera contemporânea escrita pelo brasileiro Jônatas Manzolli, que foi professor do Instituto de Artes da Unicamp, em um projeto artístico desenvolvido no Centro de Estudos Camonianos em Coimbra.

Com estreia prevista para meados deste ano, “Canto(s) da Condição Humana” é uma ópera na qual fala e canto coexistem, e um coro comenta a ação, cumprindo o papel que tinha no teatro grego.

“É uma ópera multimodal, com música e poesia, permeada por poemas camonianos que vão conversar e amarrar a trama”, explica Manzolli, doutor em composição musical pela Universidade de Nottingham.

Na narrativa, cruzam-se passado e presente. “Personagens de hoje dialogam com personagens da obra camoniana. Dialogam como se, de repente, o tempo ficasse suspenso e o ontem e o hoje se fundissem (afinal os poetas estão sempre prenhes de futuro) trazendo novidade”, sintetiza o libreto.

As personagens principais são Cassandra Tágides, arqueóloga e pesquisadora da Universidade de Coimbra, e seu antagonista Antonio Atento, porta-voz da academia. Ele tenta chama-la à razão: “Não é oportuno mexer na história”.

O mote da ópera é se os ossos de Camões, que repousam no Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa, são mesmo os do poeta. Inquietação pertinente, dado que ele foi vítima da peste negra e teria sido enterrado em uma vala comum.

A ópera explora o universo camoniano do ponto de vista de uma mulher, que tem visões e recebe cartas de seus personagens femininos, como Inés de Castro.

“Assim se discute o físico e o imaterial”, pontua Manzolli, que traz um Camões falando também do desconcerto do mundo. “E todas as questões que nós vivemos agora. Mudam-se os tempos, mudam-se as verdades, por exemplo, é um poema muito atual.”

Por fim, Cassandra conclui que a verdade de Camões está “no seu legado que ainda hoje dialoga conosco porque, vestido de universalidade, fala da condição humana”.

A editora viajou a Portugal a convite da Casa da Cidadania da Língua, em Coimbra, para uma residência artística entre 18 e 30 de novembro de 2024 para a pesquisa “Nos passos de Camões no século 21”.



Fonte ==> Folha SP

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