No começo dos anos 80, vivi talvez o momento mais temível de um fantasma nas escolas de São Paulo. Preferia fazer xixi na calça a enfrentar torneira solitária pingando, espelhos e ladrilhos brancos que trilhavam as alturas de um prédio antigo. Para mim, o pavor da assombração era duplo. Meus colegas me convenceram que era a loira do banheiro porque sou albina, além órfã de pai e mãe. No mundo dos enigmas, eu só podia ser ELA.
Estudei no Caetano de Campos, na praça Roosevelt, no mesmo edifício suntuoso onde funcionou o antigo colégio alemão. Moro ali perto, mas até hoje evito a feira aos domingos. Parte do trauma também se reflete na hora de dar descarga, com medo de que alguém me descubra, mesmo sozinha.
No orfanato católico para meninas da rua Gravataí, onde morava, não falei nada. Tinha medo de exorcismo, sei lá. E nenhuma freira ou funcionária foi chamada no colégio, provavelmente porque naquela época a tolerância para bullying era grande. E ai de quem dedurasse um instigador de abusos contra os mais fracos, como a K7, uma menina heavy metal do fundo da classe, pendurada no walkman.
Chamavam colega de bicha, cantando no recreio o refrão da Cabeleira do Zezé, enquanto batiam seus genitais contra um poste. Tinha a baiana, o escravo, a pixaim e o urubu, mas também a que socava todo o mundo caso folgassem com sua identidade. Simonão. Essa fazia ginástica olímpica e dava golpe de caratê. Eu não.
Por ser do orfanato, eu pertencia às cotas “Etiópia” e “lata de lixo” e, no meu caso particular, personificava a lenda urbana. Aguentava calada e era comum ouvir o trocadilho “a conversa ainda não chegou no banheiro”. Pesadelos com algodão nas narinas, pedindo para ser enterrada de camisola branca, passaram a ser reais. Outros, mais simpáticos, diziam que eu não tinha cor, o que só aumentava minha invisibilidade. Fui me transformando na Gasparzinha do mal.
É claro que crueldade não é só contra órfão albino de escola pública, assim como a vingança também é uma prática comum ao ser humano. Um dia, surgiu outro boato. A loira –eu?— se encontrava esquartejada em uma geladeira antiga no porão da escola. Liderei a expedição até o eletrodoméstico empoeirado para provar que eu existia e que a loira era bobagem.
Quando fui abrir a porta da maldita geladeira, bateu um terror tão grande que dei um grito e fugi. Nem morta que eu iria encarar um corpo em pedaços em um refrigerador quebrado. Todos correram comigo, alucinados. Em retaliação à minha covardia, trancaram-me no banheiro. Entre raiva e medo, quebrei todos os espelhos, e acabei cortando acidentalmente as artérias da mão.
O banheiro virou uma coisa meio “Carrie” do Stephen King e passei dias no hospital. Ninguém foi punido por isso. Ao retornar, contei na maior frialdade que sim, eu era mesmo a loira do banheiro. Passaram até a me respeitar.
Comprei no açougue língua, fígado, rins e moela, e chamei K7 para voltar ao porão. Ela não recusaria a caminhada desassombrada porque era a mais destemida. Foi na penumbra que a ameacei com pedaços de vidro. Depois de obrigá-la a abrir a geladeira, teve que comer chorando um pedaço de língua, já apodrecida. Carne da loira, falei.
Avisei que se abrisse a boca sobre a ocorrência, ficaria amaldiçoada para o resto da vida, transformando-se na lenda. Em seguida, convidei a classe inteira para uma revista à geladeira, provando que eu era eu. Qual a surpresa de todos quando viram miúdos malcheirosos enxotados em bolsas de plástico?
Décadas depois, fui chamada na escola da minha filha, que não é albina e é bastante popular. Cometeu bullying onde estuda, em um colégio particular perto da Paulista. Chamei-a de Simone, em homenagem à menina valente de outros tempos. A psicóloga fez minha filha contar o que fez. O boato da loira voltara, mas dessa vez Simone, também no ensino fundamental, comandou uma excursão. Ouvi com interesse.
Olhando para os próprios pés, minha filha relatou que reuniu todas as forças para abrir uma porta emperrada. Metade da sala foi atrás, aos gritos, dizendo que sentiam o ar gélido fantasmagórico de longe, e quando fui abrir, mãe, entrei em pânico e saí correndo. Todo o mundo correu junto, assustado. Daí fiquei com fama de covarde, ela disse, e começou a chorar.
Desculpe, e qual foi mesmo o bullying?
O espírito inquisitivo de Simone, formação de quadrilha na escola e incitação ao medo geral.
Não acreditava no que via agora: a psicóloga era a K7, transformada em Mariana, segundo o crachá. Obviamente se lembrava de mim, mas fez-se de distraída. A memória do seu olhar implacável enquanto ouvia música, a raiva que senti por todos seus ataques, a solidão profunda por não ter tido um confidente, minha vontade de ter um walkman. A náusea me dominou.
A senhora não deve ter ouvido falar da loira do banheiro, não é?, perguntou ela, com toda a calma. Mesmo sendo um engodo, pode provocar traumas irreversíveis.
Até hoje acordo sem ar, sem saber se estou viva e tenho medo de goteira por causa do ritual de passagem que supostamente nos amadurece e prepara para a vida. Disso a psicóloga nunca soube ou preferiu não ter que adivinhar. E Simone personificava quem eu queria ter sido: não uma garota abusiva, mas capaz de se defender da carnificina diária do crescimento.
Não, nunca ouvi falar da tal loira. E por que não morena, ou preta? Meio preconceituoso isso de ter que ser loira, não?
A lenda é essa, disse, concentrando o tédio nos dedos, em um leve batuque sobre a mesa.
E qual seria o castigo por tudo o que ela provocou?
Limpar o banheiro. Está perfeitamente limpo, claro, mas é um ato simbólico.
Parece-me justo, falei apenas, jogando o jogo. Encarei a psicóloga com um leve sorriso sarcástico. Sim, eu lembro de você, pensei, sua comedora de língua, amaldiçoada pela própria loira do banheiro. Senti orgulho de Simone e limpei seus olhos úmidos. A menina sentia-se humilhada por ter de limpar o banheiro da escola na frente de todos. Todes, corrigiu a psicóloga.
Fonte ==> Folha SP