Tudo começou com um livro em francês sobre Paul Cézanne (1839–1906). Marlene de Almeida, então uma jovem estudante em um colégio religioso, mal dominava o idioma, mas esforçou-se para traduzir o texto e entender o suficiente para se encantar com a imagem de um pintor solitário saindo em meio à natureza com uma tela e uma caixa de tintas, disposto a capturar a paisagem.
Cézanne pintava a Sainte-Victoire, o monte branco de sombras azuis no sul da França. Marlene sonhava com os morros testemunhos do interior da Paraíba, onde nasceu.
Décadas depois, a artista não apenas pinta montanhas: ela as transforma em tinta. Há quase 60 anos, Marlene viaja pelo interior do país — em especial pelo Nordeste — recolhendo amostras de terra vermelha, amarela, cinza, branca, verde. Ela mesma transforma esse solo em pigmento. “Meu trabalho começa no campo”, explica ao NeoFeed. “Não é quando estou pintando, é quando colho a terra.”
Não é incomum que ela peça para o carro parar no meio de uma estrada porque avistou um terreno com uma cor diferente das terras que já coletou. Sempre munida com uma pá e um saco plástico, recolhe uma porção e leva ao ateliê, onde trata o material para transformá-lo em pigmento.
Seu espaço de trabalho é como um laboratório. São milhares de recipientes — cada um contendo um punhado de solo brasileiro transformado em cor. Ela nunca contou exatamente quantos tem. “Mas tem muita coisa”, afirma.
Em uma das paredes, uma faixa pendurada anuncia: “Museu das Terras Brasileiras”. “De uns anos pra cá, comecei a chamar minha coleção assim”, explica. “É um museu inventado, artístico. Não é uma instituição — é uma obra.” Uma obra que ela sonha, um dia, doar a uma instituição para que essas terras possam ser vistas, estudadas e preservadas.
Esse museu imaginário agora viaja com ela. No dia 26, Marlene inaugura sua primeira individual na Bélgica, na Walter & Nicole Leblanc Foundation. Poucos dias antes, abriu Acute Earth na galeria Carlos/Ishikawa, em Londres — exposição que também marca o início de sua representação no Reino Unido. “Eu sempre digo que levo o Nordeste comigo. É uma alegria imensa trazer o Nordeste para a Inglaterra, para a Bélgica”, comemora.
Aos 82 anos, a artista nascida em Bananeiras, a 112 km de João Pessoa, vive um momento de reconhecimento internacional e nacional. Em 2024, participou da 38ª edição do Panorama de Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna de São Paulo, abriu as individuais Paisagens Temporais: Perspectivas em Evolução na galeria Almeida & Dale, em São Paulo, e Histórias da Terra, na galeria Marco Zero, em Recife.
“Estou muito feliz”, diz. “Feliz de ser uma mulher que vai a campo, com 82 anos, e estar aqui mostrando meu trabalho, discutindo, compartilhando tudo isso.”
Das cópias à produção das próprias tintas
Embora sonhasse pintar uma paisagem como Cézanne, Marlene passou um tempo da juventude copiando reproduções de grandes artistas — por ordem das freiras do colégio onde estudava. “Elas botavam a mão em cima da gravura e diziam: ‘Olha essa cor do céu aqui tem que ser igual’. E eu ficava ali com maior cuidado para repetir cada cor daquela me sentindo presa àquilo ali”, lembra.
A penitência virou método. Marlene ficou tão habilidosa em decifrar cores que passou a olhar os objetos ao seu redor como se fossem fórmulas cromáticas. Olhava um sapato, por exemplo, e calculava o quanto de verde, vermelho, amarelo ou branco tinha a cor. O que parecia castigo, aos poucos, afinou seu olhar.
Apesar da vocação, não seguiu direto para as artes. Foi estudar filosofia. Depois, o restauro e conservação. Foi aí que ela mergulhou de vez no universo dos materiais. “Eu aprendi muito e comecei a gostar muito mais dessa parte do trabalho que vem antes da pintura, da pincelada”, diz.
“Vermelho como sangue”, 2024

“Vermelho como Terra”, 2024

“Derrame”, 2024

“Tempo Voraz II”, 2023

Batizado como “Museu das Terras Brasileiras”, o ateliê de Marlene mais parece um laboratório, repleto de recipientes com um punhado de solo brasileiro transformado em cor
Hoje, em seu ateliê, Marlene trabalha como um pintor renascentista: trata a terra, retira impurezas, mói os grãos, transforma o pó em pigmento e, só então, em tinta. Tudo com as próprias mãos e com a ajuda da família. Seu filho, o artista José Rufino — também geólogo de formação — e o marido, Antonio Almeida, engenheiro civil, colaboram na pesquisa dos pigmentos. “Somos uma equipe”, diz.
Na família nunca faltou apoio, mas, no início, a artista lembra que poucos valorizavam esse processo. “As pessoas duvidavam. Diziam: ‘Será que essa tinta é boa? Será que não vai desbotar?’ E eu respondia: meu teste tem 73 mil anos.”
Ela se refere aos pigmentos minerais usados desde as pinturas rupestres, as mesmas cores que encontradas nas paredes da Caverna Blombos, na África do Sul. “É a mesma cor que eu uso. O mesmo vermelho, a mesma argila. Mas isso não convencia ninguém”, conta.
Se o conhecimento empírico não bastava para convencer, Marlene recorreu à ciência. Conquistou uma bolsa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e, com ela, o direito de ocupar laboratórios, manusear equipamentos e acessar espaços antes vetados.
“Com a bolsa, passei a ser mais respeitada. Recebi o aval, digamos assim, de uma pessoa séria”, diz. E completa com uma frase que atravessa gerações: “Uma mulher precisa se provar o tempo todo.”
A paisagem dentro e fora da tela
Se Cézanne pintava a Sainte-Victoire como uma montanha à distância, imóvel, cravada no horizonte da Provence, Marlene faz o oposto. Ela mergulha na paisagem. Vai ao solo, penetra nas camadas da terra, pinta não apenas o que está visível, mas o que está enraizado. Sua paisagem não é vista de fora, é habitada.
Há um gesto quase alquímico nisso tudo. A terra que ela recolhe, trata e transforma em tinta é a mesma que aparece nas telas. A paisagem não é só tema, é matéria. O resultado é uma obra que flerta com a metalinguagem: a terra pinta a si mesma.
Tecidos tingidos com pigmentos minerais são presença constante nas exposições de Marlene. Não são meros suportes, são relevo, geografia, narrativa. Com eles, a artista recria topografias imaginárias: montanhas invertidas, estalactites e estalagmites pendendo como se o teto fosse chão, como se a caverna estivesse virada do avesso.
Um de seus elementos mais marcantes são os longos tubos de tecido recheados com argilas ou areia. Em alguns, o pigmento escapa, manchando a superfície como se o próprio material insistisse em sair para contar sua história.
Presos ao teto, esses tubos escorrem até o chão. Não vazam, mas se enrolam sobre si mesmos, formando um emaranhado de tempo e matéria.
Marlene chama essas obras de “ampulhetas modificadas”: “Diferente da ampulheta, a areia não corre. Ela está presa dos dois lados. É uma tentativa de conter o tempo — talvez o maior desejo do ser humano. E, na minha idade, esse desejo só se avoluma”.
Fonte ==> ONU