“Na enchente, tentamos cuidar e proteger a Lola. Infelizmente, ela fugiu. E Morreu.”
Este é o relato de um dos 13 cards de “Um Garoto e sua Gata, uma História de Amizade”, conteúdo criado por Pedro, 17, com o suporte da mãe, Raquel Londero, 50, para a plataforma Livox, onde o bichinho de estimação do adolescente autista renasceu em imagens criadas por inteligência artificial.
Lola se afogou durante as enchentes no Rio Grande do Sul. Arisca, ela fugiu bem na hora do dramático resgate de toda a família —avós, pais, tios e pets— confinada no segundo andar de um sobrado no bairro Harmonia, em Canoas, uma das cidades mais atingidas pelas chuvas que castigaram o estado em abril e maio de 2024.
Por meio do app Livox, ferramenta de comunicação alternativa para pessoas com deficiência, Pedro foi convidado a narrar os impactos da tragédia e das mudanças climáticas em sua vida.
O projeto pioneiro deu voz também a um vizinho, Kelvin, que tem autismo grau 2. O garoto de 14 anos ilustrou a devastação que impactou a vida de 2,5 milhões de pessoas com uma constatação: ao retornar para casa após 39 dias, os insetos haviam desaparecido do bairro que ficou debaixo d’água.
Para um trabalho de ciências, o aluno do 8º ano do ensino fundamental apresentou à turma uma ideia inovadora: um hotel de insetos. Com a ajuda da mãe, Márcia Loren, 50, ele usou uma caixa de papelão para criar um prédio com vários compartimentos para abrigar besouros, formigas e afins que voltassem para área devastada.
A história foi parar na plataforma online do Livox: “O Hotel dos Bichos do Kelvin tornou-se um sucesso. Logo, abelhas, borboletas e outros pequenos seres começaram a retornar ao pátio, restaurando a diversidade da área”.
Sete cards narram a inventividade do garoto gaúcho que vem produzindo em família uma série de conteúdos para o projeto-piloto que une tecnologia, inclusão e conscientização ambiental.
“É uma perspectiva totalmente nova sobre o que aconteceu no Rio Grande do Sul, falando de mudanças climáticas do ponto de vista de pessoas com deficiência”, explica Carlos Pereira, criador do Livox, ferramenta que desenvolveu para se comunicar com a filha, hoje com 17 anos, vítima de paralisia cerebral no parto.
“São depoimentos e soluções de quem tem lugar de fala sobre o impacto da crise do clima em suas vidas e até agora não tinha tido voz.”
A HP doou um supercomputador para o projeto, avaliado em US$ 30 mil (R$ 170 mil). “É um equipamento específico para o desenvolvimento de inteligência artificial e para rodar os modelos que as famílias estão usando no Rio Grande do Sul”, explica Pereira.
Pernambucano radicado nos Estados Unidos, onde venceu o MIT Solve, desafio voltado para educação inclusiva, ele foi convidado pela HP para apresentar os primeiros resultados em um evento em São Paulo em 10 de abril.
“Estou de boca aberta com os conteúdos criados pelos filhos autistas de pessoas que perderam tudo na enchente.”
Vencedor do Prêmio Empreendedor Social em 2016, Pereira vem trabalhando de perto com os selecionados, que ainda estão se familiarizando com o uso de IA para melhorar a vida de portadores de deficiência.
“Muita gente acha que pessoas como meu filho não são inteligentes nem têm capacidade”, constata Márcia.
Como mãe e educadora, ela se empenha para mostrar as potencialidades do seu adolescente autista. “Kelvin cria vídeos sozinho. Pega vozes e figuras na internet para montar histórias. Com a inteligência artificial da Livox, ele agora pode criar as próprias figuras.”
Antes de contar com a ferramenta, a mãe se valia de cartões impressos e até de biscoitos recheados para explicar para o garoto conteúdos escolares, como as fases da lua.
Criatividade que mãe e filho demonstraram ao tratar da tragédia no Rio Grande do Sul. “Meu filho gosta de temas como carros e insetos. Então, o hotel foi uma forma lúdica de mostrar a visão dele sobre a enchente. Salvaram as pessoas, os animais maiores, mas os insetos não”, lamenta Márcia.
Ela ajuda o filhote a criar os conteúdos no computador recém-adquirido, em substituição ao que foi perdido na inundação.
A poucas casas de distância, Raquel e Pedro passam pelo mesmo processo de descoberta das funcionalidades do Livox e do uso de IA. “Hoje ele já fala um pouco, antes não falava nada. Essa tecnologia abre um leque infinito para a comunicação entre nós”, avalia a mãe.
É uma perspectiva totalmente nova sobre o que aconteceu no Rio Grande do Sul, falando de mudanças climáticas do ponto de vista de pessoas com deficiência
Ela viveu junto com o filho o luto pela gatinha de estimação, em meio a outras perdas na enchente. A microempresária viu a pequena gráfica que funcionava na garagem virar um amontoado de entulhos.
A família se refugiou no segundo andar da casa, de onde acompanhava a subida da água até chegar a 2,50 m. Enfrentou escuridão, falta de internet e precisou resgatar a vizinha de 91 anos que morava sozinha e ficou presa na casa ao lado.
Um drama que afetava diretamente a rotina de Pedro. Em razão do autismo, ele tem maior dificuldade para lidar com alterações no seu dia a dia.
“Deus foi muito bom conosco porque, no momento da enchente, ele achava que estava na arca de Noé, que é uma das histórias preferidas dele. Pedro passava o tempo cantando as músicas, chamava o avô de Noé”, relata Raquel.
O garoto encarou o resgate de barco como uma grande aventura. Só a gatinha Lola ficou para trás. “Meu marido achou ela morta e tivemos que contar para o Pedro. Toda vez que alguém saía de casa, ele perguntava se a pessoa tinha morrido. Isso foi muito complexo para o meu filho”, diz a mãe. “Quando chove, ele pergunta se vai ter arca de Noé de novo.”
Já para a família de Kelvin, o resgate foi complicado. “Ele não queria entrar no barco”, recorda-se Márcia, sobre os três dias que permaneceram ilhados. O garoto se assustava com o barulho dos helicópteros e as cenas de moradores içados.
“Ele não entendia o que estava acontecendo. O helicóptero vinha a 10 metros de altura com uma corda e pegava as pessoas. Mas tinha que dar a mão, caminhar pelo telhado. Com uma criança autista, não tem como. Os vizinhos foram indo embora e nós ficamos.”
Foram enfim resgatados por uma equipe de voluntários, que tinha entre eles o pai de uma menina autista. “Fui falando para o Kelvin que a gente ia para o shopping comer hambúrguer. Dei um remedinho para deixar ele calmo”, lembra Márcia.
Eles ficaram 45 dias na casa de praia da família. “Voltar foi horrível. Eram montanhas de lixo.”
Raquel também descreve o retorno como misto de alegria e terror: casa em destroços, marcas da água nas paredes, móveis e roupas mofadas. “Cerca de 95% das nossas coisas foram jogadas fora.”
Duras lembranças compartilhadas com os filhos adolescentes que estão aprendendo a usar IA para comunicar memórias da tragédia.
Uma experiência que deve ser ampliada para mil crianças e adolescentes gaúchos, segundo o criador do Livox. “Nossa ideia é transformar todos estes futuros usuários em criadores de conteúdo como testemunhas do impacto da crise climática no Sul”, diz Pereira.
A ideia é que o projeto revele ao mundo ativistas como Greta Thunberg, sueca de 18 anos que se tornou uma voz importante na luta contra o aquecimento global e suas consequências.
“O autismo não é uma doença”, afirma Greta, que teve seu diagnóstico de Asperger aos 12 anos. “Significa simplesmente que você é um pouco diferente de todas as outras pessoas.”
E ela faz a diferença no mundo, pontua Pereira. “Imagino meninos como Kelvin e Pedro em eventos usando o Livox para expressar como são desproporcionalmente afetados pelas mudanças climáticas”, vislumbra o idealizador do projeto. “Vamos achar novas Gretas.”
Fonte ==> Folha SP