O ninho que chocou a Internet não existe mais

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Se eu te perguntasse quem inventou a lâmpada, o avião, o carro e o telefone, você me responderia com facilidade: Thomas Edison, Santos Dumont, Henry Ford e Graham Bell. E se eu te perguntasse quem inventou a Internet? Saberia dizer se esse inventor ficou rico? Sua dificuldade em me responder é um indício de que talvez você não se lembre ou sequer saiba exatamente o que é a Internet que você usa todos os dias.

Assim como o GPS e o forno micro-ondas, a Internet é um produto da Guerra Fria e nasceu não como uma solução e sim como um problema. As universidades dos EUA tinham os melhores computadores do mundo, mas as pesquisas patrocinadas pelo Pentágono caminhavam devagar com cada computador isolado. A interconexão (do inglês: internetworking, abreviado como internet) era um problema que recebeu verbas públicas para ser resolvido.

Um computador está para uma rede assim como uma voz está para um coral: o coletivo é mais do que a mera soma de suas partes. Novas propriedades surgem quando computadores ou vozes atuam em conjunto. Experimente agora ligar o modo avião de seu smartphone ou laptop. Seu dispositivo ainda está funcionando, mas ele ainda é de muita serventia com todas as funcionalidades que perdeu por estar fora da rede? É como encontrar um fio de cabelo na sopa: perde seu encanto instantaneamente.

Note como o ninho onde nasceu a Internet era peculiar. O financiamento era público, do orçamento militar. A agência DARPA financiou universidades a partir de 1966 para que desenvolvessem soluções para o problema da internet (aqui com “i” minúsculo). Esse incentivo deu origem a protocolos e normas como o TCP/IP, UDP, Telnet, o e-mail dentre outros. O setor privado não ficou de fora. Para atender a nova demanda criada pela agência por produtos para redes, as empresas também contribuíram com padrões, como o Spanning Tree Protocol e o Ethernet.

Essas tecnologias reunidas permitiram a formação de uma rede mundial de computadores e seu nome de batismo que representava um problema passou a representar a solução para ele: Internet, agora com “I” maiúsculo, que em português significa inter-rede. O Ethernet e TCP/IP que permitiram que essa coluna chegasse até sua tela por redes interconectadas foram criados em 1973 e 1974 respectivamente. Que outra tecnologia da informação você usa que tenha mais de 52 anos?

Essa longevidade só foi possível porque não havia exatamente uma mentalidade comercial em seus criadores e sim uma científica e criativa. Foi feito para ser bom, bonito, barato e duradouro. Um fóssil vivo dessa época é o e-mail (SMTP), de 1982. Softwares para utilizá-lo estão presentes em todos os computadores e em todos os smartphones.

Você escolhe qual é a empresa que te fornecerá o serviço e você tem a liberdade para escolher por qual software você acessará sua caixa de entrada. E mais: não importa de qual empresa você obtém o serviço. Suas mensagens chegam a todos os destinatários, mesmo aqueles que se tornaram clientes do concorrente do fornecedor eleito por você.

Que outro produto de tecnologia possui tamanha interoperabilidade? O Diabo Verde (apelido meu para o WhatsApp) só permite enviar e receber mensagens de outro usuário do Diabo Verde. A Alexa  não canta músicas do YouTube Music. A Apple teve que ser obrigada por lei a adotar o USB-C como padrão no iPhone. A não-interoperabilidade por motivos comerciais é irmã da obsolescência programada.

No tempo em que estamos reconhecendo nossa dependência de serviços via Internet providos por empresas estrangeiras, é importante o entendimento que te trago aqui: nossa soberania digital está garantida no e-mail como serviço, por exemplo, pois houve 100% da transferência de tecnologia para o Brasil por ser um padrão aberto. Sabemos todos os ingredientes necessários para se fazer esse bolo. Isso não ocorre com os padrões fechados, como o do Diabo Verde.

Esse resultado não foi espontâneo. O ovo de onde saiu a internet não se chocou sozinho. Múltiplos setores fizeram essa incubação: o governo (nos EUA e no Brasil) financiou a pesquisa e a primeira rede, a comunidade acadêmica criou os protocolos e a ciência envolvida, as empresas desenvolveram os produtos seguindo esses protocolos e a comunidade técnica (na qual me filio) pôs para funcionar.

Minha comunidade não se deteve em apenas pôr a mão na massa. Em 1989 dois engenheiros de empresas rivais, Lougheed da Cisco e Rekhter da IBM almoçavam juntos num dos intervalos da IETF, a Internet Engineering Task Force. Tenho certeza de que mastigavam de boca aberta enquanto conversavam sobre um dos desafios de roteamento dinâmico da internet (i minúsculo, ela enquanto um problema). De onde tiro tanta certeza? Dos dois guardanapos usados nesse almoço que hoje são peças de museu.

Guardanapo com resolução de problemas.

Neles está rascunhado o Border Gateway Protocol (BGP), o protocolo que elege por qual rota cada pacote passará. Você testemunha o resultado dessa eleição quando traça a rota para algum destino na Internet, como o tecmundo.com.br. O uso desse protocolo na operação da Internet é uma das minhas principais responsabilidades profissionais, caro leitor, e o faço sem pagar royalties. Lougheed e Rekhter não ficaram ricos com essa criação pois ela é um padrão aberto que qualquer fabricante pode implantar sem ônus, assim como todos os demais protocolos que resolveram a internet.

Para que a Internet saísse do ninho, tivemos que criar várias organizações não governamentais para cuidar de sua governança. Enquanto no início quem mandava era quem pagava a conta – e foi assim que o Vint Cerf impôs o TCP/IP, recusando verba a quem não o adotasse – as decisões de design e funcionamento da Internet precisavam de uma entidade neutra. Daí nasceram várias organizações sem fins lucrativos como a ICANN, o brasileiro CGI.br e a IETF com seus guardanapos históricos e técnicos voluntários.

Somente em um terreno neutro é que dois engenheiros de empresas rivais desenhariam juntos o protocolo que é um dos pilares da rede. Ambos estavam nesse almoço mais a serviço da Internet propriamente dita do que a seus empregadores. Essa neutralidade permitiu que ela fosse inteiriça, por ser uma só mundialmente, e aberta a todos.

Ilustro essa abertura com o que chamo de Liberdade dos Washingtons. Temos livre acesso pela rede a dois deles: o The Washington Post, um dos mais tradicionais jornais do mundo e ao Compadre Washington, ícone do Axé Music. Os dois estão em pé de igualdade quanto à possibilidade de serem acessados pela Internet. Um jornal multimilionário não tem preferência de acesso em detrimento de nosso cantor baiano. Cabe ao internauta a escolha ordinária de qual Washington acessar.

O ninho que chocou a Internet não existe mais. As inovações e operação dela não se dão mais pelo acordo de cavalheiros entre governo, academia, empresas, técnicos e ONGs. Desde que a rede se tornou o palco central da cultura, da vida social, da economia e da política, tanto o setor privado como o setor público têm agido para desfigurar essa rede e tê-la somente para si. O internauta desinformado assiste a tudo sem esboçar reação.

Novos protocolos e produtos têm berço no setor privado, sem a interoperabilidade e a longevidade de outrora como já conversamos nesta coluna quando nos perguntamos “Quem faria almoço grátis para a IA?”. Por sua vez, o setor público tem aprovado leis que transformam a Internet de mundial, inteiriça e aberta em uma rede nacional, fragmentada e fechada, como também já conversamos nesta coluna quando te respondi quais são os efeitos colaterais da Lei Felca.

Se você ainda tem mais aniversários por fazer do que já feitos, será testemunha ocular do fim da Internet se não mudarmos esse rumo da rede. Por força do hábito chamaremos o que sobrar de Internet, mas ela em quase nada se assemelhará à qual hoje conhecemos desde 1966, não importa a qual santo oremos.

Disse Edmund Burke que “Um povo que não conhece sua História está fadado a repeti-la.” e ele está certo. Porém, contei a você, internauta, um fragmento da história da Internet para que justamente você a repita ao preservar a maior obra da humanidade através de suas escolhas. Preferindo soluções interoperáveis como as de código aberto (ex.: Firefox), financiando esses projetos, protegendo a rede das ofensivas do poder público ou resolvendo o problema da internet através de suas criações em algum outro par de guardanapos.

Fonte ==> TecMundo

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